Ao observar a multidão de manifestantes na Praça Tahrir, centro do Cairo, é possível notar algo diferente: no meio do protesto há um círculo rodeado por um corredor onde não há ninguém, exceto alguns homens vestidos de amarelo.
O círculo é formado por mulheres e, no corredor, os homens são guardas voluntários dispostos a proteger as manifestantes. Os homens do outro lado do corredor, os primeiros antes da grande massa masculina que participa da manifestação, também ajudam a isolar as mulheres.
Os guardas voluntários são necessários pois, para as mulheres do Egito, protestar pode ser arriscado: entre o dia 28 de junho, quando a última onda de protestos começou, e o dia 3 de julho, dia do golpe contra o presidente Mohammed Morsi, foram registrados 180 casos de ataques sexuais, segundo números da Anistia Internacional.
"Calculamos que são mais de 200 agora, sem incluir os muitos que não são registrados", afirmou à BBC Mundo Diana Eltahawy, investigadora da Anistia Internacional no Cairo.
O problema do abuso sexual não é novidade no Egito. "O que mudou foi o nível de violência mostrado", acrescentou Eltahawy.
Rapidez
Hanan Razek, jornalista da BBC e autora do documentário Mulheres na Praça Tahrir, explica que esses ataques sexuais e estupros são fenômenos relativamente novos. Ela diz que, na primeira revolução, que levou à queda do presidente Hosni Mubarak em fevereiro de 2011, não se viram tais incidentes.
Segundo a jornalista, a primeira vez que viu um círculo para proteger as mulheres em aglomerações no Egito foi em novembro de 2011, "após surgirem os primeiros casos de ataques sexuais em massa nos protestos".
O correspondente da BBC no país Aleem Maqbool afirma que há vídeos na internet que mostram como dezenas de homens de repente fazem um círculo em volta das mulheres durante manifestações e as levam, no meio da multidão, enquanto elas são tocadas e atacadas.
"Nunca imaginei o que me fariam em apenas alguns minutos. Fizeram um círculo fechado ao meu redor. Começaram a tocar cada parte de meu corpo, a violar cada parte de meu corpo. Estava tão traumatizada que só conseguia gritar. Não podia falar nem pedir ajuda, apenas gritar", afirmou Hania Moheeb, vítima de ataque em um vídeo gravado pela ONG internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch.
"Se aproveitaram que eu estava no chão, me pegaram, me viraram, colocaram minhas pernas para cima e me estupraram como quiseram", relatou Yasmine El-Baramawy, outra vítima, no mesmo vídeo.
Segundo a analista da Anistia Internacional, no meio do caos é difícil saber quem está tentando salvar a vítima e quem está atacando.
"Todo mundo estava me agarrando, fingindo querer me tirar da multidão, mas na verdade estavam me atacando", disse Shorouk Al Attar há algumas semanas à BBC.
Shorouk foi vítima de um destes ataques junto com a irmã perto da praça Tahrir durante um protesto em 2012.
"Não se pode evitar"
Aleem Maqbool afirma que, nos últimos anos, as mulheres egípcias se acostumaram a ser vítimas de violência sexual, principalmente quando há grandes aglomerações. O feriado do Eid (festa religiosa muçulmana) é uma das mais perigosas.
"Agora parece que os grandes protestos na praça Tahrir, coração da revolução egípcia, se transformaram em uma grande fonte de atração para alguns jovens e meninos egípcios que querem olhar com lascívia, perserguir e até atacar sexualmente as mulheres", disse o correspondente.
"Se está aqui e vê uma menina vestida de forma indecente, o que vai fazer? Não se pode evitar", disse a Maqbool um jovem que estava na praça com outros jovens.
"Estamos deprimidos, não encontramos trabalho e nem temos dinheiro, o que você espera?", questionou outro.
Vários dos jovens com quem a BBC conversou confessaram que iam para a praça olhar as mulheres. E, apesar de não admitirem envolvimento em ataques graves, a atitude demonstra que eles não consideram a violência contra as mulheres um problema, e os estupros são até motivo de piadas.
Outros setores da sociedade egípcia suspeitam que, além do problema social que existe há tempos no Egito a respeito do abuso sexual de mulheres, alguns dos ataques na praça Tahrir visam gerar terror no país.
Segundo Maqbool, a ideia de que a Irmandade Muçulmana promoveu os estupros para evitar que as mulheres participem dos protestos é popular entre alguns ativistas e grupos de apoio a mulheres.
Mas não há provas, e a acusação foi negada pelo partido.
Os homens de amarelo
Diante deste vácuo de segurança surgiram os grupos de guardas voluntários, como os homens de amarelo que cercam as mulheres na praça Tahrir.
Um destes homens é da organização chamada Operação contra Ataques Sexuais, que teve um papel crucial na denúncia dos casos de agressão, na proteção das manifestantes e no apoio às vítimas.
A organização também usa sua página no Facebook para alertar as mulheres sobre áreas perigosas e possíveis estupros.
Mas o que os voluntários pode fazer é limitado.
"(...) O respeito e o medo das forças de segurança diminuiu desde a revolução, e é difícil imaginar como as mulheres poderiam estar livres do estupro em meio a uma grande multidão", afirmou Maqbool.
À medida que os protestos continuam no Egito, muitas mulheres procuram áreas onde podem se manifestar ou celebrar com mais segurança. Os arredores do palácio presidencial, onde há mais vigilância, é uma alternativa.
Mas, independentemente de quem são os estupradores e dos fatores sociais ou políticos que podem motivar estes ataques, segundo Maqbool "está claro que o tema dos abusos sexuais não está sendo levado em conta com a gravidade que merece, nem por políticos, nem pelos funcionários de segurança e nem pela sociedade egípcia em geral".