Sobreviventes de tragédia argentina sofrem sequelas após quase 10 anos

Além dos traumas psicológicos, a exposição ao monóxido de carbono e ao cianeto ainda provocam problemas de saúde.

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No dia 30 de dezembro deste ano, o incêndio que matou 194 pessoas, na boate Cromañon, em Buenos Aires, completa 10 anos. Mas mesmo depois de tanto tempo, os mais de 4 mil sobreviventes ainda lutam contra as sequelas físicas e mentais, apesar da justiça já condenar os responsáveis pela tragédia, responsabilizando inclusive funcionários públicos, além do surgimento de uma legislação mais segura e que defina os responsáveis.

"Sem justiça, as famílias e sobreviventes não conseguem superar o que aconteceu... porque volta e meia volta (o trauma). Minha filha de vez em quando sente alguma coisa, ela ficou dois anos afastada, hoje é médica cardiologista, e me liga quando isso acontece... é uma coisa que faz parte da vida dessas pessoas, que elas não vão esquecer, que vão carregar pelo resto da vida", afirma a coordenadora de saúde da organização Segurança para a Família Cromañon Nunca Mais, Lila Tello, dizendo que as sequelas psicológicas fizeram com que 16 dos sobreviventes tirassem a própria vida.

Além dos traumas psicológicos, a exposição ao monóxido de carbono e ao cianeto ainda provocam problemas de saúde. "Os sobreviventes ainda sofrem com as sequelas, fazem raio-x periódicos, porque o monóxido sai depois de dois meses, mas o cianeto se acumula no corpo por anos e traz problemas renais e pulmonares", explica Lila.

Mesmo superando as mazelas físicas e psicológicas, os sobreviventes ainda tem que lidar com os preconceitos sociais, uma vez que são vistos como pessoas com problemas, o prejudica que consigam trabalho ou que consigam dar prosseguimento à vida.

"Minha filha passou a ter fobia de lugares grandes, por isso, teve que estudar em uma universidade privada, menor, onde se sentia melhor", conta Lila, relatando ainda que "ninguém dá trabalho para os sobreviventes da Cromañon, porque sabem dos problemas psicológicos... o terror ainda persiste, o que prejudica que essas pessoas prossigam com suas vidas", completa.

As famílias e sobreviventes lutaram por anos para conseguir a tão desejada Justiça, Lila, assim como familiares da Kiss, reclama do corporativismo dos gestores públicos, que acusa de terem tentado se esquivar da responsabilização. Até agora, três funcionários públicos foram presos, outro sub-comissário (algo como um delegado) foi responsabilizado, dois chefes do corpo de Bombeiros foram presos, o dono da boate foi condenado a cinco anos de prisão, mas ainda recorre da sentença junto a cortes superiores em liberdade, o responsável pelo evento também foi preso e condenado a 18 anos, além da prisão dos músicos da banda.

"Na Argentina ser luta muito pelos direitos humanos das vítimas da ditadura, mas oq eu aconteceu também é uma questão de direitos humanos, eram jovens que saíram para se divertir", afirma.

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.​

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

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