Quatro acusados, presos em flagrante e preventivamente por participação na onda de ataques que tomou conta do Ceará desde quarta-feira (2), foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional (7.170/83). A decisão foi tomada no último sábado (5) pelo juiz plantonista do 14º Núcleo da comarca de Sobral, município localizado na região Norte cearense, a 231 km de Fortaleza.
De acordo com a determinação do magistrado, que pediu para não ter o nome divulgado por questão de segurança, os autuados Francisco Leonardo de Lima, Maria de Lourdes Gomes, Francisco Jean Pereira e Francisco Janmerson Tito atentaram "contra a soberania nacional do Estado do Ceará em meio a um caos público gerado pelas organizações criminosas locais visando reverter decisão política emanada pelo secretário da Administração Penitenciária".
Maria de Lourdes e Francisco Jean, segundo inquérito policial 553-118.2019, teriam comprado e fornecido combustível para Francisco Leonardo e Francisco Janmerson para incendiar o prédio de um Centro de Referência de Assistência Social (Cras) em Sobral.
Flagrados no local do crime, Leonardo e Janmerson teriam confessado que receberam a ordem de chefes de uma facção criminosa para atear fogo no Cras. Eles também teriam revelado a participação no crime de Maria de Lourdes e Francisco Jean, respectivamente sogra e pai dos dois incendiários.
Baseado no inquérito policial, o magistrado entendeu que o ato dos quatro não se caracterizava como "mero crime de incêndio público, tipificado no artigo 250 do Código Penal, pois contém motivação política". Um requisito para a aplicação da Lei de Segurança Nacional.
Segundo escreveu o juiz, a encorajamento dos acusados era "decorrente da inconformidade das organizações criminosas com a decisão política do secretário da Administração Penitenciária do Ceará (Luís Mauro Albuquerque) em adotar a Lei de Execuções Penais como único critério de separação entre presos". Em 2016, a Secretaria da Justiça do Ceará (Sejus) cedeu a pressão de criminosos e autorizou a separação de presos nos presídios por facção.
Na decisão judicial, o magistrado entende ainda que a "conduta dos indiciados representa uma célula de organização criminosa de âmbito nacional, que exerce poder paralelo na ordem interna, com vistas a atacar o caráter supremo da soberania para afastar a aplicação da Lei de Execuções Penais, instituindo uma norma não prevista na Constituição".
Como a aplicação da Lei de Segurança Nacional é de competência da Justiça Federal, o juiz de Sobral transferiu o caso para as varas federais.
Para um juiz federal ouvido pelo O POVO, que também não quis ser identificado, a decisão do magistrado de Sobral é uma "equívoco jurídico". Ele explica que o ato em questão é uma irresignação quanto a um aspecto particular da política penitenciária. E não algo que ponha "em xeque o estado democrático de direito, a federação ou a soberania".
Além disso, entende o magistrado federal, não há uma pauta política traçada pelas facções com o intuito de impor e substituir a ordem democrática como exige a Lei de Segurança Nacional.
O advogado Cláudio Justa, integrante do Conselho Penitenciário do Ceará (Copen), avalia como perigoso o precedente aberto pelo juiz plantonista de de Sobral. "O risco dessa manobra judiciária é que se acabe enquadrando qualquer irresignação a atos contrários ao governo. Em outros casos, a resistência política poderá ser criminalizada?", questiona.
Para Justa, a Lei de Segurança Nacional não deveria ser tocada diante do esgaçado ambiente político vivido atualmente no Brasil. "Sobretudo pelo Judiciário". No Código Penal, diz, é farta a possibilidade de enquadramento jurídico para os crimes cometidos pelas facções.
FARC?
Segundo advogado Cláudio Justa, do Conselho Penitenciário do Ceará, para aplicar a Lei de Segurança Nacional tem de existir um viés ideológico. Não é o caso da onda de ataques das facções. "Não estamos falando da Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)", compara.
Malefício
O advogado Deodato Ramalho, da Comissão de Segurança Pública da OAB-Ceará, afirma que não se pode vencer a criminalidade "farpeando o estado democrático de direito".
A decisão do juiz de Sobral, em usar a LSN para enquadrar faccionados, só traz malefícios. "Indiretamente, ele está igualando esses atos de violência dos criminosos com uma ação política".
Segundo Deodato, o Estado tem retomar o controle nos presídios e nas ruas. Porém, usando leis que se destinam a punir esse tipo de manifestação criminosa.
Ceará registra ataques a ambulância, Câmara e rádio no interior do estado
A madrugada desta segunda-feira (7) registrou ao menos dois ataques na cidade de Icó, a 365 km de Fortaleza, no sexto dia seguido de ataques violentos no estado. O número de atentados passa de 100 e atingiu ao menos 32 cidades, segundo disseram policiais ligados à investigação da onda de violência.
Os dados não são confirmados oficialmente pela Secretaria da Segurança Pública. A pasta afirmou, porém, que ao menos 110 suspeitos de participação nos ataques foram presos. Desse total, 76 são adultos e 34 adolescentes. Um contingente de 300 agentes da Força Nacional foi enviado ao Ceará no sábado (5) por ordem do ministro Sergio Moro para reforço na segurança.
O governo do Ceará iniciou no domingo a transferência de presos suspeitos de comandar a onda de ataques. O governo federal disponibilizou 60 vagas em presídios federais para os líderes das ações. Segundo o governo estadual, apenas um dos chefes de facção tinha sido transferido até as 10h30 desta segunda --outros 20 presos devem ser levados nas próximas horas.
Para Cláudio Justa, presidente do Conselho Penitenciário do Ceará, a tendência é que os ataques deixem de ocorrer na Grande Fortaleza e migrem para o interior do estado.
“Tudo indica que a estratégia do crime agora é a interiorização dos ataques em razão da saturação de policiamento na região metropolitana. É mais difícil de combater, é as facções têm muita capilaridade”, disse Cláudio Justa, do Conselho Penitenciário do Ceará.
Ataques nesta madrugada
Por volta de 1h da manhã, um caminhão-caçamba que prestava serviço à prefeitura de Icó foi incendiado. Três horas depois, criminosos atacaram simultaneamente o prédio da rádio da cidade e a sede da Câmara Municipal e fizeram disparos contra as portas.
No mesmo horário, na cidade de Reriutaba, a 278 km da capital, homens chegaram em uma caminhonete e incendiaram uma ambulância que estava no pátio do hospital municipal. O veículo ficou completamente destruído.
A SSPDS (Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará) informou ainda está fazendo levantamentos de ocorrências durante a madrugada no estado. Até a madrugada de ontem, três suspeitos haviam sido mortos pela polícia. Durante trocas de tiros, um policial foi ferido na mão e não corre risco de morrer.