Um relato vívido da história recente dos Estados Unidos através do olhar de uma ex-primeira-dama. Talvez essa seja uma boa apresentação do livro de memórias de Michelle Obama, Minha História (Ed. Objetiva), mas com certeza é um tanto quanto incompleta. Afinal, antes de ser primeira-dama (e de deixar de ser, após oito anos), Michelle Obama foi advogada, vice-presidente de um hospital, diretora de um ONG. Foi também a noiva, a mãe, a filha e a “única mulher, a única afro-americana, em todos os tipos de ambientes”.
”Passei algum tempo realmente pensando sobre as pessoas, as histórias e as experiências que me moldaram e ajudaram a me tornar a pessoa que sou hoje. E eu estou orgulhosa do que criei. Estou orgulhosa porque é franco, é honesto, é totalmente e completamente eu”, disse ela sobre o processo de escrita do livro.
O começo
Se o texto flui com certa dificuldade no início, o bom humor e a sinceridade com que ela passeia pelas lembranças faz o leitor avançar com interesse a cada página.“Sua história é algo que você tem, o que sempre terá. É algo para se orgulhar”, diz Michelle, ao lembrar dos ensinamentos dos pais, Fraser e Marian Robinson, ainda quando era criança.
A história da família se cruza com a história política e cultural do país na década de 60. Ao valorizar a própria trajetória, Michelle relembra a convivência com os pais e o irmão em um pequeno imóvel no andar de cima da casa de uma tia, em Chicago, e a determinação e curiosidade que sempre a moveram.
Muitas são as referências ao jazz (“música que deveria haver no céu”) quando lembra de um tio que mantinha uma coleção de discos do gênero. O relato também tangencia a segregação racial e o imbrincamento das questões sociais e econômicas.
“Éramos muito novos para entender que as coisas ao nosso redor mudavam depressa [...]Em 1950, quinze anos antes de meus pais se mudarem para South Shore, o bairro era 96% branco. Quando saí de lá e fui para a faculdade, em 1981, era 96% negro”, recorda.
Na primeira parte do livro, onde fala da sua infância e adolescência, Michelle consegue dar voz à criança e transmitir com sinceridade sentimentos e curiosidades que a moviam na época.
Vez por outra a Michelle adulta faz alguma ponderação, como no trecho destacado acima, onde ela diz que era muito nova para entender as coisas ao redor, ou mesmo neste outro, no qual ela recorda como foi errar um exercício em sala de aula, quando tinha apenas cinco anos, e pedir para a professora no dia seguinte para refazê-lo. “O constrangimento parecia um peso, algo do qual nunca conseguiria me livrar [...] Hoje gosto de imaginar que a sra. Burroughs ficou impressionada com aquela menininha negra que tivera coragem de se defender”, diz ela.
As lembranças, tão próximas de qualquer um de nós, faz o leitor se reconhecer e identificar ainda mais com ela.
Poder
Como primeira família afro-americana a ocupar a Casa Branca, os Obama sempre foram vistos como legítimos representantes da raça negra. “Qualquer erro ou lapso de julgamento seria ampliado, repercurtindo como além de suas dimensões reais”, diz Michelle sobre a responsabilidade que pesou sobre eles tão logo Obama foi eleito.
Antes disso, os dois viveram muitas coisas juntos. Tudo é lembrado com detalhes no segundo capítulo do livro, intitulado Nossa História, no qual ela começa falando da paixão por Barack Obama. Do primeiro beijo, ao casamento, passando pelo nascimento das filhas Malia e Sasha, à decisão dele de encarar a vida política - primeiro no Senado, depois à frente da presidência.
“Havia dias, semanas, meses, em que odiava política. E havia momentos em que a beleza do país e de seu povo me deixava tão absorta que nem conseguia falar”, diz a ex-primeira-dama.
Rapidamente, ela descobriu qual a melhor forma de usar o seu poder - suave e indefinido, como o próprio papel de primeira-dama. “Minha influência consistia em ser uma espécie de excentricidade: uma primeira-dama negra, uma mulher ativa profissionalmente, mãe de duas crianças. Se as pessoas queriam usar as mesmas roupas, sapatos e penteados que eu, precisavam me ver no contexto em que estava, e por que estava ali”, diz.
À frente do cargo, ela ouviu de tudo. “Em geral, minha sensação era de que nada que eu fizesse estaria certo, que nenhuma fé ou empenho no mundo me fariam superar meus detratores e suas tentativas de me invalidar. Eu era uma mulher, negra e forte, o que para certas pessoas, mantendo certa mentalidade, só poderia se traduzir em ‘raivosa’”, recorda.
O esgotamento pela crueldade do que era dito sobre ela e sua família, o desconcerto frente aos ataques pessoais constantes, doíam - e ela expõe a ferida. Doíam também as perguntas feitas por alguns jornalistas, que insistiam em saber como era para ela, uma mulher negra, falar para plateias predominantemente brancas.”Nunca gostei dessa pergunta. Parecia sempre vir acompanhada por meio sorriso encabulado e um tom de ‘não me leve a mal’ que as pessoas normalmente usam ao tratar da questão de raça”, explica, ao complementar que “a perspectiva diminuía a todos, por supor que havia apenas diferenças”. “Eram interações naturais, autênticas. Eu me via abraçando as pessoas instintivamente e ganhando de volta um abraço apertado”.
Afeto também é o que rege a relação de Michelle com as filhas. Durante a campanha, foram elas a lembrar o que mais valia naquele corre-corre: “As meninas deixavam a campanha mais tranquila, no mínimo por não terem muito interesse no resultado. Para mim e Barack, um alívio tê-las por perto - um lembrete de que, no fim das contas, nossa família era mais importante que qualquer cômputo de apoiadores ou qualquer queda nas pesquisas”.