Você está com vontade de sair do isolamento e se encontrar com amigos em seu restaurante preferido? Se respondeu sim, não está sozinho, e é parte de um enorme grupo. Afinal, os restaurantes, já há algum tempo, servem muito mais do que apenas para alimentar as pessoas. Eles funcionam para proporcionar experiências, são como uma extensão da sala de estar e palco de encontros de todos os tipos: fraternais, comerciais, comemorativos e amorosos. E são frequentados por várias tribos diferentes. Mas como será isso depois da flexibilização do isolamento? Como serão os protocolos, a etiqueta e o comportamento para quem trabalha em restaurantes e para quem os frequenta?
A cadeia produtiva, ou seja, tudo que é necessário para fazer um restaurante ter vida, para movimentar um estabelecimento, envolve muita gente, independentemente do estilo da casa. Além dos corajosos empreendedores, que, no caso dos restaurantes, costumam ser “empregados” do seu próprio negócio, onde dão longo expediente, estão pequenos agricultores, chefs, cozinheiros, garçons, maîtres, sommeliers, nutricionistas, faxineiros, manobristas, auxiliares, administradores, caixas, contadores, fabricantes de talheres, pratos, copos, equipamentos de cozinha, mobiliários, exaustão e ar-condicionado, sistemas de controle, arquitetos, operadoras de cartão e vales-restaurante, serviços de manutenção de diversos itens, fornecedores de ingredientes, fornecedores de bebidas, importadoras, muitos produtores do agronegócio, jornalistas e mais uma infinidade de elos de uma corrente que, de acordo com Fernando Blower, presidente do Sindicato dos Restaurantes e Bares do Rio de Janeiro (SindRio), envolve, só na capital do estado, mais de 15.500 restaurantes e bares. A Associação Nacional dos Restaurantes (ANR) estima em 6 milhões os empregos diretos, e destaca que os restaurantes são no Brasil uma das principais portas de entrada para empregos formais, acrescentando que restaurantes e bares são essenciais para o turismo e o lazer.
Conversei com muitas pessoas - chefs de cozinha, donos de restaurantes, gerentes de alimentos e bebidas, fornecedores diversos e comunicadores especializados no tema - que se dedicam há anos aos negócios que compõem essa intricada e extensa cadeia, cujo objetivo maior deve ser alimentar e receber bem os clientes. Minha intenção era saber o que estão fazendo durante o isolamento e o que eles imaginam e pretendem realizar após esse período complexo.
Alberto Landgraf, chef de cozinha e sócio do Oteque, um dos mais relevantes restaurantes que representam no país a chamada Alta Gastronomia, aproveitou o tempo do isolamento para dar aulas on-line de criatividade, descansar e pensar em como reabrir seu negócio. O Oteque, inaugurado no início de 2018 no Rio de Janeiro, segundo Landgraf, “foi construído antes da pandemia, mas parece que o projeto foi elaborado para funcionar pós-pandemia”: a cozinha funciona no salão, o que permite que seus clientes acompanhem a feitura dos menus; os equipamentos da cozinha são os mais modernos e avançados tecnologicamente; as mesas no salão são amplas e já têm o distanciamento recomendado pelas vigilâncias sanitárias do Brasil e do exterior; e só funciona com reserva.
- Eu e minha equipe estamos preparados, como sempre estivemos, para reabrir o Oteque e atender nossos clientes.
Restaurante Oteque, no Rio de Janeiro - Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
Restaurante Oteque, no Rio de Janeiro: cozinha no salão, equipamentos avançados tecnologicamente, mesas amplas e com distanciamento recomendado pelas vigilâncias sanitárias do Brasil e do exterior, e funcionamento só com reserva Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
Rafa Costa e Silva, chef proprietário do restaurante Lasai, foi um dos primeiros a fechar, antes mesmo do decreto que determinava o fechamento compulsório dos restaurantes do Rio. Ele fez isso aconselhado por amigos, também chefs, como José Avillez (a quem Rafa substitui no programa Mestre do Sabor), que tem restaurantes na Europa e já naquela ocasião estava com as casas fechadas e vivenciando uma situação inimaginável. O impacto foi forte, pois era o dia em que o Lasai complementava seis anos de existência. O Lasai é para o Rafa e sua mulher, Malena Cardiel, um projeto de vida que começou a ser construído há mais de nove anos, quando decidiu sair do espanhol Mugaritz para voltar ao Brasil. Eles idealizaram o restaurante com todas as coisas positivas que viram e aprenderam em anos de trabalho nos EUA e na Espanha. O Lasai está na lista dos melhores restaurantes do mundo, e sua clientela é majoritariamente composta por turistas que vivem no exterior. Depois de fecharem o restaurante e darem férias coletivas para toda a equipe, fizeram um financiamento coletivo que possibilitou manter viva a chama do restaurante, desenvolvendo novidades para atender a clientela antes da reabertura. Eles continuarão investindo no mesmo conceito - menu degustação e atendimento apenas com reserva - mas lançaram o Empório Lasai, que “vai comercializar produtos e o cardápio Lasai com os pratos 90% preparados para que sejam apenas finalizados na casa do cliente”.
Fernando Sá, experiente profissional de gestão de restaurantes e superintendente de Alimentos e Bebidas do grupo Fasano, no Rio de Janeiro, que reúne os restaurantes Fasano Al Mare, Gero e Marea, demonstra especial preocupação com os custos operacionais dos negócios de alimentação durante o isolamento e após a flexibilização.
- Os restaurantes em sua maioria não têm reservas financeiras ou fôlego de fluxo de caixa para manter de forma saudável as suas atividades. Se ter lucro com restaurante já estava complicado antes da pandemia, imagine manter os salários e benefícios, aluguel e outros custos obrigatórios sem faturamento ou expectativa de faturamento - afirma. O restaurante Gero, que planejava fazer delivery a partir de agosto, antecipou a iniciativa para durante o período de isolamento.
A especialista em branding gastronômico Vanessa Huguinin, da Food-se, criou um curso on-line para comentar os impactos da Covid-19 sobre a gastronomia, e as tendências e preferências do consumidor para a pós-pandemia. Ela enumera alguns pontos: a higiene, a limpeza, a responsabilidade social e o consumo sem desperdícios serão atributos ainda mais valorizados; a aceleração do uso da tecnologia e do universo digital acontecerão de forma mais profissional; e muitos restaurantes vão entrar no sistema delivery e take away/grab and go. Vanessa ressalta que o preço será um fator determinante de compra, e que nada será como antes.
A empresária Adriana Drigo e sua sócia, a chef Morena Leite, proprietárias dos restaurantes Capim Santo em São Paulo e no Rio, dos restaurantes Santinho em São Paulo, dos serviços de catering e bufê, e criadoras do Instituto Capim Santo, estão dando tratos à bola para reinventar seus negócios. O Capim Santo SP, que mudaria de endereço em abril, teve que paralisar a obra, adiando a abertura. Todos os restaurantes, sem exceção, são self service, modalidade de serviço que deverá ser totalmente reformulada após a pandemia. A ideia é passar a oferecer sistema parecido com o do rodízio. Nesse meio tempo, elas continuaram ativas com entregas em domicílio e a doação de refeições para profissionais de saúde que estão na linha de frente contra a Covid-19.
O chef Thomas Troisgros, do Olympe, que se prepara para mudar seu restaurante para o Leblon, durante a pandemia lançou a hamburgueria on-line Três Gordos, brincadeira inspirada em seu sobrenome (Troisgros, em francês, significa três gordos). O hambúrguer é do tipo smash, fino, com crosta resultado do processo de feitura e, atualmente, moda no EUA. O tipo smash é bem diferente dos burgers de sua outra grife, a TTBurger.
O chef Laurent Suaudeau, da Escola Laurent, que qualifica muitos cozinheiros e formou grandes chefs, bate insistentemente na mesma tecla: educação e investimento na formação profissional para a gastronomia.
- Com ou sem pandemia, é fundamental educar e formar. Só assim teremos pessoas que trabalham de forma técnica, eficiente, responsável e sustentável, e que respeitam e aproveitam os ingredientes.
Janaina e Jefferson Rueda, chefs proprietários da Casa do Porco e do Bar da Dona Onça, colocaram o pé no freio para a abertura de um novo negócio, a Mercearia, que comercializará os produtos dos seus restaurantes, mas aceleraram a implantação de caixas próprias para o serviço de entrega. Os testes das embalagens e o desenvolvimento de um cardápio com receitas adequadas para o serviço de entrega exigiram empenho da dupla. O yakisoba de porco, o porco SanZé, os embutidos e a porcopoca da Casa do Porco, o picadinho de carne, o estrogonofe e o The Modernist Galinhada do Bar da Dona Onça são algumas das possibilidades. Quando eles puderem reabrir as casas ao público, passarão a aceitar reservas para evitar filas de espera.
O chef Rodrigo Guimarães, que foi braço direito e esquerdo do chef Felipe Bronze por dez anos e atuou como chef do ORO, montou o At Home, confort food para entregas em domicílio. A comida chega com instruções de como servir, as embalagens são práticas e a entrega, eficiente. Rodrigo conta que tudo começou por uma necessidade de não ficar parado, acostumado que está com a agitada rotina de um restaurante.
- Fui me empolgando com tantas possibilidades que acabei mergulhando na construção do conceito e dos cardápios do At Home.
A chef Flávia Quaresma, que mantém fechados desde o isolamento seus restaurantes Café Iris e Cantina, instalados na Casa Firjan, em Botafogo, vem quebrando a cabeça para imaginar como vai ficar a gastronomia e os restaurantes na era pós-Covid-19. Ela pondera que talvez a pandemia tenha chegado para acelerar uma nova revolução na gastronomia. Afinal, já havia um tempo que algo não chacoalhava o mundo gastronômico.
- Eu não vejo mais espaço para tanto show e preciosismo nos restaurantes. Sinto que o foco, antes da pandemia, estava mais na beleza do local, na arquitetura, nas louças e no chef em si. A loucura por surpreender, inovar e entreter vinha tirando o protagonismo do que realmente importa em um restaurante: alimentar e acolher, tendo o alimento saboroso no papel principal, nutrindo com responsabilidade e com o mínimo de interferências artificiais. Acho importante resgatar a simplicidade e refazer as relações humanas, alimentando e acolhendo o cliente, tendo a alegria como fio. Buscaremos mais simplicidade nas cozinhas, nos ambientes e nos pratos, dando mais importância à origem dos alimentos, à higienização e às técnicas que privilegiem a qualidade dos produtos, com adequação à nova realidade econômica.
Flávia enfatiza:
- Não haverá espaço para desperdícios, e os cardápios pequenos e inteligentes, com custos bem ajustados, equipe enxuta, gestão afiada e uma relação transparente e afetuosa com os clientes, serão fundamentais para esse retorno.
Chicô Gouvea, arquiteto que projetou vários restaurantes no Rio, não arrisca apontar tendências, mas não acredita em espaços divididos por acrílico ou vidro. Para ele, seria um contrassenso:
- Ninguém vai a um restaurante apenas para comer, mas para conversar, confraternizar e brindar à vida - diz ele, que acredita em um aumento de uso de espaços abertos e ao ar livre.
O também arquiteto Guilherme Leuzinger Milanez acha que, apesar do alto custo, os equipamentos eletrônicos para abertura automática de portas, sistemas de circulação de ar eficientes e cozinhas à vista do público podem ser um caminho.
Alguns tópicos foram unanimidade entre chefs, gestores, arquitetos, marqueteiros e jornalistas com os quais conversei: o cliente vai valorizar a transparência e terá preocupação maior com a limpeza e a higiene, o emprego de muito álcool em gel, o uso de máscaras, ou escudos faciais, e a utilização de recursos como tapetes que desinfetam sapatos.
O fato é que todos aguardam ansiosamente pela descoberta de uma vacina, mas todos querem, o quanto antes, voltar a sair, confraternizar, abraçar os amigos. E onde melhor que num bar ou restaurante?