Na arte e nas ruas tudo pode acontecer e o entendimento sobre as manifestações artísticas no espaço urbano é algo complexo que ainda surpreende e causa polêmica. Uma das recentes aconteceu ao longo da semana nas redes sociais e teve como estopim uma pichação feita no trabalho do artista Sanatiel Costa realizado em um muro da Avenida Dom Severino, zona Leste da cidade. O fato chocou muita gente e muitos consideraram o pixo uma agressão contra arte de Sanatiel. Outros criticaram e defendem que a arte das ruas é efêmera e está sujeita às diversas intervenções.
Sanatiel preferiu não comentar o acontecido. Segundo ele, para ?não prolongar a tragédia?. Contudo, esta discussão nas redes levou as pessoas envolvidas com arte de rua ? fotógrafos, artistas visuais, curadores ? a se reunirem na sexta-feira, 31, na Casa da Cultura, para debater com mais afinco esta temática tão controversa. Na ocasião, com o ?artista prático? piauiense Willyams Martins.
Lili para os mais próximos, conduziu as discussões, partindo de um trabalho que ele realiza em Salvador, que consiste em retirar por meio de uma resina específica, determinados pixos, grafites e outras intervenções dos muros das cidades para expor em museus e galerias. Isso deixa marcas nos muros, verdadeiras janelas que modificam o trabalho original.
Com base na apropriação que Willyams faz do que está exposto nos muros foram levantados questionamentos acerca de autoria, estética, espaço público, privado, urbano e até mesmo o conceito de arte e a relação/função do artista na diversidade espacial dos grandes centros e da periferia.
Willyams explica que trabalha com arte pública, dentro dos espaços públicos e privados. Ele ressalta que sua arte é uma reação às dificuldades existentes nas cidades. ?Eu vejo a sociedade como algo muito difícil de se conviver. As cidades, os problemas das cidades que acontecem dentro do urbano. É muito cansativo pra mim ver a cidade e não reagir diante isso. Eu admiro muito artista que trabalha com sua subjetividade, mas o meu trabalho está voltado a um dado social muito amplo. Eu não consigo ser indiferente às causas sociais?, expõe.
Grafites e pixos são os grandes atrativos de Willyams e de muitos artistas que praticam intervenções pelos muros das cidades. Pesquisando pichações e grafites no seu mestrado em Antropologia na Universidade Federal do Piauí (UFPI), Jhon Wedson Santos e Silva desenvolveu a nomenclatura charpi (anagrama da palavra pichar) para realizar seus estudos, onde ele diferencia o grafite e a pichação.
?O grafite é pensado como arte urbana pelo primado na elaboração: as imagens são coloridas, muitos possuem efeitos de perspectivas, que os redimensionam qualitativamente, como o sombreamento e a tridimensionalidade. Os grafites são mais inteligíveis pelo cidadão comum, muito frequentemente visam se comunicar com os sujeitos da cidade. Já as pichações no estilo charpi, também chamado de pixo em outros centros urbanos, são basicamente compostas por traços rápidos e de um alfabeto estilizado ininteligíveis aos que não fazem parte do circuito da pichação?, diferencia Wedson.
Em seu trabalho pioneiro, ele explica que as pichações são pensadas com a intenção de ser diferentes umas das outras, dando novas dimensões a subjetividade do pichador, e os que intervêm no trabalho do outro são considerados invasivos. ?Nesse sentido, cada um deles dá a noção precisa do autor. Riscar ou escrever sobre o charpi de alguém, é algo impensável a essa linguagem, haja vista que o ato é tido como um ataque direto ao próprio autor?, analisa.
Sobre esta ?invasão? dos pichadores, ele comenta o episóidio acontecido com Sanatiel: ?Eu vejo que é um problema haver essa guerra entre as pessoas. Tanto espaço que tem por aí vai logo fazer em cima do trabalho do outro. Eu acho isso meio complicado. Por que ele não evitou. Agora se aconteceu, por que teve que ter essa briga. Se aconteceu, aconteceu, deixa pra lá?
Estética sobrepõe a ética?
Apesar das ruas serem um espaço de máxima expressão de liberdade e até mesmo subversão, os grafiteiros e até mesmo pichadores costumam ter uma ética tácita que prioriza uma espécie de pacto de não agressão, não interferência. Essa linha é tênue porque o que está exposto nas ruas é muito vulnerável e a qualquer momento pode se modificar, pois a estética sobrepõe a ética de acordo com as ideias de Willyams.
?A estética sobrepõe a ética no sentido de que ela está acima de tudo. Se um artista vai fazer um trabalho que pode causar danos morais a ele, ou que ele seja processado. De certa forma poderá haver um perdão para aquilo, porque primeiro ele levou em consideração o sentimento de criação, o sentimento estético, que é importante no homem?, explica que em nome da estética é possível e até necessário ousar.
O fato da ética sobrepor a estética não significa que as ruas sejam uma terra sem lei, sendo preciso portanto haver bom senso e diálogo entre os artistas. ?É claro que todo artista precisa ter ética antes de produzir algo que venha a causar danos ao outro. Caso acidentalmente um trabalho venha a prejudicar um outro é melhor não fazer. Mas pode acontecer acidentalmente de um trabalho que tenha um valor estético muito forte causar um pouco de danos no sentido ético e isso não é bom. Mas a estética sobrepõe a ética, sim?.
Ele mesmo carrega consigo valores éticos que são um critério na hora de retirar os refugos das paredes. Ele cita um espaço que ele não tocaria, um bairro em Buenos Aires repleto de pixos, que se tornou ponto turístico, como fizeram num local usando a mesma técnica dele e deixando uma lacuna no local. ?Eu não tenho isso de chegar num sítio como esse no Bairro de Buenos Aires. As minhas ações são voltadas para um âmbito estético?, declara.
Ele conta que prefere se apropriar dos espaços públicos de maneira ética e avalia que certas imagens devem permanecer. Contudo, reconhece que é necessário subverter. ?Esses espaços são exatamente a vitrine da cidade, onde eu me aproprio. Muita gente não concorda com essa apropriação, mas eu não vejo como muito problemático, exatamente porque a estética sobrepõe a ética, porque eu prefiro ser ético em não descolar certas imagens que eu acho que estão ali é para ficarem mesmo ali no tempo e se acabarem ali?.
Transitório e Transautoral
Para os artistas presentes no debate da Casa da Cultura, anonimato que está sendo mostrado, não há uma autoria e que é feito na rua está para o mundo. No debate ocorrido na Casa da Cultura, sinalizaram que os rumos da arte contemporânea caminham para uma arte efêmera, que além de transitória é ?transautoral?.
?Ninguém é dono de nada, não tem direito a nada. A partir do momento que você escreveu, desenhou... Aquilo já é publicado para os transeuntes. As pessoas poderiam se preocupar menos com esta questão de autoria e fazer uma autoria coletiva, onde pudessem a partir destas inscrições e desenhos se tornar uma grande narrativa da cidade. Os muros são páginas de um grande livro que é a cidade?, reitera Willyams, que considera que estes desenhos são vulneráveis e estão aí para serem absorvidos.
Para o curador Guga Carvalho, o que está nos muros não são obras para contemplação, mas indícios de outras visões e maneiras de se apropriar da cidade. ?Esteticamente falando, acho a sujeira coletiva que vai se formando bastante interessante. Gosto quando vão se acumulando restos de várias intervenções de indivíduos diferentes pelos muros, um borrão que foge a intenção de cada individuo particular que por ali passou?, avalia.
Guga considera que assim o autor passa a ser coletivo e sem rosto, traduzindo a essência da cidade. ?Esse autor coletivo está acima de qualquer demarcação territorial e individual egoica (uma privatização do espaço público) e também sobre qualquer proposta de embelezamento que parta de um único olhar?, reitera.
DesapEGO e especulação visual
O fato de vivermos num país, num mundo ocidental, onde nós temos um apego muito grande pelas coisas é um dos fatores que fazem com que os artistas se apeguem às suas obras, mesmo as que estão na rua. É o que ressalta Willyams. Guga Carvalho, no debate cunhou a expressão ?especulação visual?, que é praticada pelos artistas de rua que têm uma certa vaidade e têm bastante apego à obra, querendo que ela seja intocada.
Willyams orienta o artista a estar preparado para as eventualidades que podem acontecer com seu trabalho.?Eu penso que a gente poderia ter mais desapego às coisas. Pois o homem tem um potencial muito grande de criação.
Então por que ele faz aquela expressão e não se prepara ao fazer que aquilo pode apagar ou não, ou acrescentar, ou sofre mutilações. O que falta mesmo é um preparo deste artista pra ele notar e perceber que aquilo é vulnerável.
O artista tem que se preparar para isso e saber encarar as perdas?, frisa.
Assinar denota apego, mas Granizo Terehell, artista de rua que faz os famosos atalhos pelos muros da capital, considera que não existem regras para autoria e o artista deve agir de acordo com seus ideais e sua convicção.
?Cada um assume a postura que lhe convém. Não acredito numa regra geral onde artista contemporâneo deva se desapegar da autoria. Particularmente decidi não assinar alguns trabalhos, mas se alguém chegar pessoalmente e perguntar sobre a autoria, pois deseja saber quem sou, geralmente falo. Basta fazer a pergunta. Minha escolha de não assinar surgiu muito mais por hábito, pois anteriormente escrevia frases políticas pelos muros de Teresina e não sentia nenhuma necessidade de assinar meu nome como autor?, explica.
O fotógrafo Danilo Medeiros afirma que o artista contemporâneo não deve se preocupar com regras e só tem um dever: produzir. ?Se assina ou não é de escolha dele. A assinatura escrita facilita a identificação e a procura de mais informações sobre ele, mas um trabalho consistente pode ser reconhecido e admirado mesmo sem conhecer o autor.
Um exemplo disso são os atalhos, curti muito mesmo sem saber se quem produzia era homem ou mulher, alto ou baixa?, comenta Danilo.
A questão da autoria é um ponto polêmico na arte contemporânea há muitos anos e nunca se chegou a um consenso quanto a isto. O que interessa nisto tudo é que os artistas dialoguem de modo que as ideias coexistam de uma maneira que garantam a liberdade de expressão de todos. ?O que não pode morrer é o direito de expressão dos dois lados?, destaca Danilo Medeiros.