FACES DO PIAUÍ - Serra da Capivara: casa do homem americano

Portal Meio Norte lança série em homenagem ao Dia do Piauí, resgatando a história dos primeiros habitantes do Estado

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Por Sávia Barreto e Juarez Oliveira

O Dia do Piauí será comemorado no próximo dia 19. Para homenagear a data, o Portal Meio Norte lança uma série de cinco reportagens que revelam as principais faces do Estado. A primeira delas, sobre a pré-história, faz um resgate das origens do homem piauiense, tendo como cenário principal as pesquisas arqueológicas na Serra da Capivara. A história dos nossos indígenas e dos heróicos camponeses que lutaram pela independência do Brasil, são retratadas na segunda reportagem. O calor piauiense não poderia ser esquecido, e é tema da terceira reportagem desta série. Já o sabor característico do Piauí, traduzido pela cajuína, é retratado na matéria que comprova que a bebida é sim piauiense. Para ilustrar a força e determinação do povo piauiense, a quinta e última reportagem desta série conta a história do professor Antônio do Amaral, que transformou os alunos do município de Cocal dos Alves em meninos mágicos da matemática brasileira.

Um pequeno grupo de piauienses acende uma fogueira à noite com pedaços de pedra lascada para se proteger do frio e espantar animais que poderiam se aproximar perigosamente. Os vestígios dessa fogueira, deixados há 100 mil anos na região da Serra da Capivara, são estudados hoje por arqueólogos de todo o mundo que vêm ao Piauí pesquisar a pré-história do homem americano. A reserva ambiental piauiense é considerada um dos lugares mais importantes do mundo quando se trata de pinturas rupestres.

A maior autoridade sobre o tema no Estado é a arqueóloga Niède Guidon. Ela revela que os piauienses que acenderam a fogueira há 100 mil anos deixaram os vestígios mais antigos do homem na América do Sul, encontrados em escavações no sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, que se encontra a 19 metros acima do nível do vale, protegida por grandes blocos originários do desmoronamento do paredão rochoso. As descobertas arqueológicas no Piauí estão revolucionando as teorias sobre o povoamento das Américas. A história de Niède se confunde com a dos estudos sobre a pré-história do homem piauiense. A arqueóloga é formada em História Natural pela Universidade de São Paulo e trabalhava no Museu Paulista, quando soube da existência do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato, em 1963.

Especialista em arqueologia pré-histórica, pela Sorbonne, e com especialização pela Universidade de Paris I, Niède integra a Missão Arqueológica Franco-Brasileira desde 1973, concentrando suas pesquisas no Piauí. Ela é hoje a Diretora Presidente da Fundação Museu do Homem Americano, a FUMDHAM. No Museu do Homem Americano são expostos os resultados das pesquisas e, junto ao Museu, encontram-se as reservas técnicas que abrigam as coleções de material arqueológico, paleontológico, zoológico, botânico, além de laboratórios e os serviços administrativos da FUMDHAM.

Antigamente Niède Guidon ia para o Parque às 6 horas e ficava verificando os trabalhos até às 14 horas. Depois, voltava para o trabalho de laboratório e a parte administrativa. ?Minha rotina mudou este ano porque estou bem velha e com problemas de saúde?, lamenta. Hoje, a pesquisadora sai pela manhã para ver as escavações, agora dirigidas pelos novos arqueólogos, volta e fica trabalhando com publicações, artigos e administração.

A história da arqueóloga Niède Guidon se confunde com os estudos da pré-história no Piauí

Há tantos anos vivendo no Piauí, o trabalho da arqueóloga não se esgota. Apenas na região dos Parques Nacionais Serra da Capivara, Serra das Confusões e área limítrofes, são contabilizados 1.266 sítios arqueológicos. Maria Conceição Lage, a primeira doutora piauiense em Arqueologia, revela que em todo o Estado já se conhece a existência de pelo menos 2 mil sítios arqueológicos.

?Mas com certeza existem muito mais, só que ainda não foram visitados nem cadastrados no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)?, pontua Lage. Questionada sobre o que ainda falta ser encontrado para comprovar as teorias mais controversas da ocupação do homem no Piauí há mais de 100 mil anos, Niède Guidon é enfática: ?Não falta nada, o material foi analisado por um especialista francês que atestou que essas peças de pedra lascada foram feitas e utilizadas pelo homem?.

Maria Conceição Lage é a primeira doutora piauiense em Arqueologia

Como ainda não há laboratórios para datação no Piauí, o material coletado é enviado para a Universidade de São Paulo ou para países como França, Suécia ou Estados Unidos. ?Quando o arqueólogo está escavando um sítio e encontra material possível de ser datado, como por exemplo, carvão, envia para um laboratório especializado neste tipo de análise e que tenha reconhecimento mundial, como o Beta Analitic de Miami, nos Estados Unidos?, diz Conceição Lage.

DANÇA, SEXO E CAÇA SÃO TEMAS COMUNS NAS PINTURAS RUPESTRES

Os piauienses pré-históricos caçavam para garantir a subsistência, praticavam sexo, realizavam cerimoniais e também não dispensavam a dança. São esses os temas mais comuns nas pinturas encontradas no Estado. Dependendo da região, há variação no tipo de arte rupestre. Enquanto no norte ela é mais abstrata, sem representação de temas identificáveis, as do Sudeste, como as da Serra da Capivara, são as que revelam mais representação de cenas. ?Neste caso há temas variados como sexuais, de caça, de luta, de parto e de possíveis rituais de iniciação?, exemplifica Lage.

De abstrata a concreta: a variação no tipo de arte rupestre depende da região

Conceição, que é professora da Universidade Federal do Piauí, conta que as tintas usadas para gravar o dia-a-dia do homem pré-histórico que vivia no Piauí são, sobretudo, matéria inorgânica, como, por exemplo, hematita (pigmento vermelho), ghoetita (pigmento amarelo), kaolin (pigmento branco) e mistura de hematita com kaolin (pigmento cinza). Somente no caso do pigmento preto é que se tem uma composição orgânica (carvão animal ou vegetal). Pontas de lança, facas, raspadores, batedores e perfuradores estão entre os objetos encontrados nas escavações dos arqueólogos pelo Estado.

Imagens de caça eram comuns nas pinturas encontradas na Serra da Capivara

RIO PARNAÍBA PODE TER SIDO CAMINHO PARA HOMEM CHEGAR AO PIAUÍ

O homem se espalhou pelo mundo muito tempo antes do que se pensava. É o que indicam as novas descobertas dos arqueólogos. Hoje já existem datações de 60 mil anos na Austrália, homo sapiens com 180 mil anos no Oriente Médio e homo erectus com 800 mil anos na Ilha das Flores, em pleno Oceano Pacífico. Mas como o homem chegou ao Piauí? Niède Guidon explica que o homem poderia ter saído da África, por volta de 130 mil anos, quando a África passou por um terrível período de seca que originou os desertos. Grupos podem ter saído para o mar, procurando comida, e os ventos e correntes os trouxeram para o Nordeste. ?O rio Parnaíba pode ter sido o caminho até o rio Piauí. Nossas pesquisas demonstram que o rio Piauí era muito mais largo do que hoje, chegava a cerca de 1 km do sítio da Pedra Furada?.

Sítio da Pedra Furada foi palco para a chegada dos primeiros habitantes da América

Para Conceição Lage, ainda é cedo para dizer como o homem chegou ao Piauí. ?Ainda falta pesquisar em muitas regiões, sobretudo com investigações mais aprofundadas, com escavações sistemáticas, como vem sendo feito na Serra da Capivara há mais de 30 anos. Os resultados que se têm hoje são pontuais para aquela região do Piauí e não se pode generalizar para o Estado como um todo?, argumenta.

A arqueóloga confirma, no entanto, que se trabalha com a hipótese da chegada do homem por múltiplos lugares, inclusive direto da África. ?Também é preciso se considerar que as condições de passagem do homem via Estreito de Bering aconteceram em diferentes épocas, durante os períodos glaciais e não somente a 20 mil anos como defendem alguns, mas há 200 mil anos as condições eram as mesmas?, completa.

PIAUÍ TINHA MEGAFAUNA, LHAMAS E TIGRES-DENTE-DE-SABRE

Se a caatinga e o cerrado dominam atualmente as paisagens do Estado, até 10 mil anos atrás esta região tinha um clima tropical úmido. No planalto, uma floresta Amazônica. ?Até hoje temos espécies animais e vegetais desse bioma?, conta Guidon. E na planície, Mata Atlântica. ?O clima começou a mudar, mas até 6 mil anos ainda tínhamos aqui a megafauna e muitos herbívoros como a lhama. Somente então a floresta foi substituída pela caatinga e esses animais desapareceram?.

Mastodontes, preguiças gigantes e tigres dentes-de-sabre. Para a maioria dos piauienses esses animais pré-históricos são familiares apenas em filmes de ficção científica. Mas há milhares de anos eles eram os habitantes naturais do Estado. Conceição Lage diz que até o momento só se pode falar da fauna e da flora na região da Capivara, que é onde já existe um estudo multidisciplinar sistemático realizado há mais de três décadas. ?Ali foram evidenciados animais de grande porte, que hoje não existem mais ou existem em tamanho bem mais reduzido como, por exemplo, a preguiça gigante, tatu canastra, paleolama, toxodonte, tigre dente-de-sabre, mastodonte, porcos-do-mato?.

Quanto à vegetação, estudos realizados apontaram que na região haviam árvores de grande porte. ?Inclusive nos fundos dos vales ainda se tem espécies deste tipo, mas há cerca de 6 mil anos já domina uma vegetação parecida com a atual, típica do Bioma Caatinga, com mandacarus, facheiro, xique-xique, quipá, palma, cabeça de frade, caroá e também maniçoba, jurema, carobas e paus d?arco?, explica Conceição.

Até 10 mil anos atrás esta região tinha um clima tropical úmido

PIAUÍ EXPORTA PESQUISADORES EM ARQUEOLOGIA

Berçário do homem americano, o Piauí exporta hoje pesquisadores na área. Este ano, um aluno da UNIVASF (Universidade Vale do São Francisco), apresentou sua candidatura para uma bolsa da União Européia. São bolsas que permitem ao aluno fazer cursos de mestrado ou doutorado na Itália, França, Espanha e Portugal. ?Esse aluno foi o único do Brasil a ser aceito. E ficou classificado em segundo lugar, de todos os candidatos do mundo. Na frente dele somente uma aluna da Índia, que tem uma escola de arqueologia antiga e das mais consideradas?, conta Guidon.

Com o significativo patrimônio arqueológico piauiense, as pesquisas na área só crescem. O Piauí é pioneiro no país e talvez na América Latina no desenvolvimento de trabalhos de Conservação de sítios de Arte Rupestre. A opinião de Conceição Lage é confirmada com o bacharelado em Arqueologia da UFPI, que tem essa especificidade. Foram os pesquisadores do Núcleo de Antropologia (NAP) da UFPI, liderados por Niède Guidon, que iniciaram as pesquisas arqueológicas na Serra da Capivara e foram também pesquisadores do núcleo que realizaram os trabalhos de conservação de arte rupestre neste parque.

Pesquisadores de todo o mundo vêm ao Piauí estudar os primeiros registros do homem

Atualmente, pesquisadores do NAP são convidados para realizar trabalhos de conservação em diferentes estados brasileiros como Pernambuco (Vale do Catimbau), Paraíba (Pedra do Ingá), Rio Grande do Norte (Seridó), Ceará (Sítios do Cariri Cearense), Pará (Pedra das Arraias) e ministrar cursos no Amazonas (Universidade Estadual do Amazonas) e na Argentina (Quebrada de Humahuaca).

O Piauí é o único estado brasileiro que tem duas graduações em Arqueologia, de duas universidades federais, além de contar com laboratórios de pesquisa de qualidade considerada excelente, como por exemplo, na Serra da Capivara. ?Imagine que no país têm hoje 11 graduações de arqueologia e duas delas ficam no Piauí, portanto, é um privilégio para nossos jovens terem essa oportunidade de formação?, comemora Lage. A UFPI possui também um Mestrado em Antropologia e Arqueologia, para formar profissionais em nível de Pós-Graduação strito sensu e já apresentou um projeto junto a CAPES para criar um Doutorado em Arqueologia, que ainda está em processo de julgamento.

AEROPORTO VAI INTENSIFICAR ATRAÇÃO DE TURISTAS

Trabalhando com o passado, mas voltada para o futuro, Niède conta que seu maior sonho é que o Aeroporto Internacional de São Raimundo Nonato seja terminado e os investidores possam começar a construir hotéis e toda a estrutura turística ?para que a região possa utilizar de maneira útil o tesouro que aqui deixou o homem pré-histórico?. A arqueóloga aposta no aeroporto para garantir o auto-sustento do Parque Nacional da Serra da Capivara, que não tem recursos fixos, mas recebe doações anuais da Petrobrás, por exemplo.

Os trabalhos de preservação do Parque Nacional e dos sítios arqueológicos são realizados em conjunto entre a FUMDHAM, o Instituto Chico Mendes e o IPHAN, com recursos captados pela Lei Rouanet, e contribuições esporádicas, do Ministério da Cultura e do Ministério do Meio Ambiente. O Colégio Santa Cruz, de São Paulo, leva, todos os anos, uma turma de estudantes para visitar a Serra da Capivara e a FUMDHAM. Iniciativas como essa serão intensificadas com a conclusão do aeroporto.

O sonho de Niède Guidon está mais próximo de ser concretizado. No último dia 04 de outubro, o governador Wilson Martins autorizou a sub-rogação da construção do terminal de passageiros do Aeroporto Internacional de São Raimundo Nonato, além de obras de urbanização do Mirante do Cruzeiro, acesso binário e viário ao Museu do Homem Americano, Centro de Convenções e intervenções no Centro Histórico, todas em São Raimundo Nonato. As cinco obras somam R$ 22 milhões em parceria com o Ministério do Turismo e a Caixa Econômica Federal, com emenda do deputado federal Paes Landim.

Fotos: Arquivo Jornal Meio Norte

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