O estúdio tem características que são familiares a qualquer profissional do rádio: microfones, mesa de som, paredes com isolamento acústico, computadores.
No entanto, há algumas diferenças ? ainda que sutis: o roteiro da programação, por exemplo, é feito na íntegra em braile. O computador, por sua vez, responde a comandos de voz.
Tudo pensado para facilitar o trabalho e o aprendizado de um grupo muito especial de pessoas.
Esse é o contexto do projeto ?Um Olhar para a Cidadania?, desenvolvido pelo instituto Comradio do Brasil, uma ONG que atua na formação de comunicadores, produção e distribuição de conteúdo para o rádio e internet.
O projeto, que tem dois anos de existência, já está na segunda turma.
O objetivo é, através da comunicação, empoderar as pessoas com deficiência visual, para que eles, sem a necessidade de mediação, pautem, debatam e provoquem reflexão na sociedade sobre os seus deveres e direitos (cidadania). Por esse motivo, conta com a parceira da Associação dos Cegos do Piauí (ACEP), localizada no Bairro São Pedro, na zona sul de Teresina.
Durante anos, as pessoas com deficiência foram secundarizadas no planejamento das políticas sociais, dando assim a continuidade a uma história marcada pela falta de acesso, exclusão, discriminação e falta de olhar com inclusão.
O objetivo dessa parceria, de acordo com a Comradio, é justamente debater e apresentar soluções concretas que favoreçam a inclusão das pessoas com deficiente visual no mundo dos com visão, através do rádio, utilizando a internet como plataforma.
O coordenador do projeto ?Um Olhar Para a Cidadania?, Jessé Barbosa, sintetiza o espírito dessa iniciativa.
?Buscamos, sobretudo, combater a ?violência do favor?, que é o velho costume que as pessoas tem de tratar o portador de deficiência visual como coitadinho?.
Barbosa explica que o projeto tem planos audaciosos ? e desafios. ?a ideia é sistematizar nossas práticas e enviar para outras regiões do Brasil, possibilitando a formação de comunicadores, e visando difundir a cidadania.
Costumo dizer que nós, da Comradio, fomos os primeiros a ser capacitados no projeto, pois logo no começo tomamos contato com um mundo que, até então, não conhecíamos.
Tivemos de aprender a lidar com as necessidades e características dos deficientes visuais, e encaramos o desafio de desenvolver uma metodologia inovadora?.
Um dia de aula com a turma da ACEP
O jornal Meio Norte acompanhou uma manhã na rotina do projeto ?Um Olhar para a Cidadania?. Entramos no estúdio instalado na sede da ACEP, e conhecemos as pessoas beneficiadas pelo projeto.
Tudo começa na antessala do estúdio, onde acontece uma aula ? na verdade uma reunião participativa ? onde os deficientes visuais aprendem sobre as técnicas de rádio, discutem as pautas e fortalecem a rotina de produção.
Tudo isso culmina em produções que são veiculadas na internet e também na sede da ACEP, no sistema de rádio indoor. No interior do estúdio, encontramos Luiz Sampaio, deficiente visual que fez parte da primeira turma de alunos beneficiados pela iniciativa.
Em meio ao concentrado trabalho de programação da rádio, ele conversou com nossa reportagem. O depoimento de Luiz ajuda a entender o que representa essa iniciativa.
?Tenho a consciência de que estou ajudando meus colegas. Hoje, tenho a função de mobilizar todos, chamá-los para o estúdio, fazer com que participem. E estamos crescendo a cada dia?, disse ele, em meio a mais um dia de tarefas no estúdio com os colegas da ACEP.
Lá encontramos também Antônio Alves de Castro ? o Toinho. O sorridente homem é um apaixonado por música ? tornou-se conhecido no meio musical por tocar teclado em várias bandas. Para se apaixonar pelo rádio, foi um pulo.
?Trabalhar com a linguagem do rádio aqui no projeto aumentou a minha sensibilidade musical. A cada dia que passa, a minha expectativa para novos progressos aumenta. Nos superamos todos os dias?, diz o participante, que é um fã do estilo MPB.
Além de Luiz e Toinho, outros talentos despontam nas aulas do projeto Um Olhar para a Cidadania. É o caso de Marcos Barbosa, que é fã de redes sociais e vê na internet uma paixão que o conecta com o mundo.
?No entanto, a grande rede ainda é muito visual, o que acaba atrapalhando um pouco?, diz ele, que é mais um dos aplicados alunos das aulas de sonoplastia e produção.
Programas são retransmitidos no interior
O jornalista Francisco José ministra aulas de técnicas de rádio aos alunos cegos, e explica que os encontros acontecem sempre às terças feiras. Nessas aulas, são abordadas as rotinas e técnicas de produção de rádio.
Os alunos aprendem como funcionam as vinhetas, os spots, anúncios, entre outros pontos. Tomam contato com as mesas de som, acostumam-se com a dinâmica da linguagem radiofônica, se desenvolvem.
Na ACEP funciona a webradio Nova Visão, na qual são gerados os programas que são veiculados no site www.comradio.org.br/cidadania que, por sua vez, é uma plataforma exclusiva voltada para a divulgação dos diretos das pessoas com deficiência visual.
Além da veiculação neste endereço, os programas produzidos pelos cegos são veiculados em algumas emissoras do interior do estado, como a rádio Cultura de Picos e a rádio Educativa de Oeiras, por exemplo.
Outra conquista da turma de alunos da ACEP é o espaço na Rádio Pioneira de Teresina nas tardes de domingo (13h às 14h), onde os participantes põem em prática as atividades agendadas durante a semana (entrevistas marcadas, materiais produzidos) e os apresentam ao vivo direto do estúdio. O programa aborda os direitos e demandas dos cegos.
"Esse foi um dos maiores desafios do projeto: fazer com que eles mesmos falassem dos problemas que os atingem, sem a necessidade de mediadores. Hoje, eles mesmos agendam entrevistas, conversam com autoridades, informam-se sobre seus direitos, e difundem esse conteúdo", diz Francisco José.
Ainda de acordo com o professor, "o rádio é o veículo que mais se aproxima dos deficientes visuais. Eles têm uma identificação muito interessante com esse meio, e são dotados de uma sensibilidade muito maior no que diz respeito a reconhecer a qualidade do som".
Mas como é a adaptação dos alunos junto aos equipamentos de um estúdio de rádio? Francisco explica que uma mesa de som, por exemplo, é um aparelho relativamente complexo - sobretudo para quem não enxerga, mas que o aprendizado é constante e o ritmo, ditado pelos alunos.
"Não precisamos mexer, em um primeiro momento, em todas as chaves de controle de uma mesa de som. Vamos ensinando o básico para as necessidades do momento, e eles vão progredindo".
A parceria entre o instituto Comradio do Brasil e a ACEP não se limita aos estúdios: nos 46 anos da Associação dos Cegos, comemorados em 21 de junho, os alunos fizeram transmissões ao vivo das atividades direto da sede da instituição.
Antes, no dia municipal da pessoa com deficiência (22 de março), os alunos produziram reportagens externas na Praça Rio Branco, no centro da capital. Mais recentemente, participaram do Salão do Livro do Piauí (Salipi), onde a organização montou uma parceria com a Comradio, através da qual foi preparado um estúdio adaptado.
A partir dele, os alunos da ACEP fizeram a cobertura total do evento, com uma série de entrevistas e informes, concretizando um verdadeiro show de aprendizado e inclusão social.