O destino de uma área de 6.000 hectares para plantação irrigada de soja, milho e outras culturas ao lado do chamado berço do homem americano se tornou alvo de críticas e temor no interior do Piauí. As informações são do portal UOL.
O projeto pretende cultivar grãos no chamado Corredor Ecológico, que fica entre os Parques Nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões, em Brejo do Piauí. Por suas riquezas arqueológicas, os dois locais foram reconhecidos há três décadas como patrimônio mundial pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Especialistas afirmam que a área que iria para o plantio pode guardar registros importantes para a arqueologia e a paleontologia. Já a empresa empreendedora nega esses riscos (leia mais abaixo). A área de plantação fica a 7,6 km da serra da Capivara.
Segundo o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), vestígios encontrados no local "confirmam a antiguidade da presença humana no continente americano". "O conjunto de sítios arqueológicos oferece datações recuadas temporalmente, que revolucionaram as teorias clássicas das rotas de entrada do homem nas Américas pelo estreito de Bering."
No local, está instalado o Museu do Homem Americano, com um dos maiores parques de pinturas rupestres do mundo. Também fica aí o Museu da Natureza.
"As descobertas realizadas no Sítio Arqueológico Boqueirão da Pedra Furada, por exemplo, levantaram a hipótese de que o homem poderia ter vivido, nesse local, há 60 mil anos", explica o Iphan.
Licenciamento criticado
O projeto avançou no mês passado, após o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) conceder a licença ambiental, contrariando relatório de técnicos do órgão.
Contra o licenciamento, o MPF (Ministério Público Federal) no Piauí expediu duas recomendações em novembro. A primeira pediu ao ICMBio que "revogasse imediatamente a autorização de licenciamento ambiental".
Mas o órgão federal respondeu que não iria acatar a solicitação. No documento, o presidente, o policial militar Marcos Sinamovic, diz que o ICMBio "não contrariou o seu corpo técnico, considerando que houve ao longo da análise opiniões divergentes entre os setores competentes para apreciar o caso".
A segunda recomendação foi dada no mesmo sentido à Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí, que acolheu parcialmente o pedido, suspendendo uma audiência pública marcada para o último dia 26.
A pasta pediu um novo relatório de impacto ambiental (RIMA) à empresa, que foi entregue nesta semana. "Com o novo RIMA publicado no site da Semar, haverá um prazo de 45 dias para marcar a data da audiência pública", informou a secretaria à coluna na quarta-feira.
"O MPF avaliou que há omissões e informações que precisam ser mais bem esclarecidas para avaliar a compatibilidade da atividade e seus impactos negativos com a finalidade do corredor ecológico, o que inclusive justificou a expedição das recomendações", explicou Luise Torres, procuradora da República no município de São Raimundo Nonato.
O que preocupa?
Entre pesquisadores da área, parece consenso que a área não deveria receber o empreendimento. O paleontólogo Juan Cisneros, da UFPI (Universidade Federal do Piauí), diz que a plantação pode trazer prejuízos ao melhor conhecimento da área.
"Perto desse local tem um registro geológico único de uma glaciação no Piauí. É um registro de geleiras, o mais bem preservado em todo o Nordeste. Fica a menos de 15 km do local", diz ele, citando que, pela proximidade, pode haver registros e fósseis similares na fazenda.
Segundo ele, na área onde haverá as plantações nunca foram feitas pesquisas específicas. "Isso não significa que não tenham registros. Nunca foram achados porque a gente nunca foi lá. É uma área que a gente sabe que tem potencial", diz.
Ele mostra uma imagem de satélite do local onde será o empreendimento. "Lá tem formações areníticas, que podem ter de tudo, desde fósseis até mesmo arte rupestre", diz.Cisneros diz que as serras são ricas em registros fósseis da era paleozoica. Segundo ele, há vestígios na região que revelam uma formação rochosa geológica que data do período devoniano (entre 416 milhões e 359 milhões de anos atrás).
Além disso, afirma que, entre 10 e 15 km ao norte do local, há um vestígio de formação de pavimento estriado, algo raro de ser encontrado.
"É uma formação de arenitos plana e que tem estrias paralelas que foram produzidas por gelo. Isso é conhecido em geologia como pavimento de origem glacial. Ou seja, o gelo passou e foi aplanando, polindo e raspando as rochas."
Lá temos o registro mais bem preservado de todo o Nordeste de ação de geleiras. Nessa região [do empreendimento], pode também haver fósseis de animais marinhos."Juan Cisneros, da UFPI
A coordenadora do Movimento Nacional de Direitos Humanos no Piauí, Maria da Conceição da Silva Araújo, também se mostra receosa. Para ela, o empreendimento pode trazer danos irreversíveis.
"Usar o aquífero esplêndido que está embaixo dessas regiões para irrigar lavouras de soja e milho é a maior falta de responsabilidade que um ser humano pode cometer contra este ecossistema [caatinga]."
Marcia Chame, pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e da Fundação Museu do Homem Americano, cita que, graças ao conhecimento da riqueza histórica, a região "saiu da extrema pobreza, impulsionada pelas pesquisas científicas lideradas por Niéde Guidon [arqueóloga franco-brasileira pioneira na área]".
"Por meio da implantação de atividades econômicas não predatórias, geradoras de renda, educação e de qualidade de vida e saúde, baseadas nas riquezas arqueológicas e cultural deste bioma único no mundo —e pouco preservado no Brasil—, a região é modelo para o mundo", afirma.
Ela destaca quatro riscos das plantações:
• Destruição da interconectividade de populações de animais e plantas, inclusive de espécies ameaçadas de extinção;
• Perda da certificação orgânica e da produção do mel pelo uso de agrotóxicos;
• Ameaça a sítios com movimentação de terra e equipamentos e dispersão de sedimentos pelo ar;
• Aumento do risco de incêndios.
Empresa nega riscos
Em uma longa resposta à coluna, a Apesa Agropastoril Piauiense rebate os argumentos dos especialistas e diz que não há riscos com a implementação do empreendimento, nem ambiental, nem histórico.
"O fato de a fazenda estar localizada dentro de um Corredor Ecológico não é um impeditivo legal para a instalação do empreendimento, já que não é uma Unidade de Conservação", diz.
Segundo a empresa, dos 12,9 mil hectares da fazenda, 3,8 mil foram "destinados à reserva legal, que margeia integralmente a zona destinada ao plantio com os limites do Parque Nacional Serra da Capivara e da área de preservação permanente".
No que se refere à área agricultável, diz que destinou 6.000 hectares, "sendo prevista a instalação de 500 hectares por ano, ou seja, o empreendimento levará 12 anos para ser totalmente implantado". Também cita que estudos mostraam que não haverá danos às criações de abelhas.
A empresa ainda informa que, "ouvindo as demandas locais e das autoridades", resolveu adaptar o projeto para agricultura consorciada irrigada, que deve ter plantação de outras culturas, sem uso de agrotóxicos e com a previsão de geração de cem empregos diretos.
Sobre os danos arqueológicos, diz que as plantações só terão início após a Semar licenciar e o Iphan comprovar que o projeto não afeta os sítios arqueológicos ou paleontológicos.
"A partir disso, se tudo estiver dentro do permitido pela legislação ambiental, a Semar emite a Licença Prévia, que apenas atesta a viabilidade técnica e locacional do empreendimento."