Pinturas rupestres e vestígios de cerâmica achados recentemente na região às margens do rio São Francisco revelam uma riqueza arqueológica ainda pouco conhecida dos povos que habitam esse entorno há pelo menos 8.000 anos.
As primeiras descobertas na área ocorreram durante a construção da hidrelétrica de Xingó, no final dos anos 1980, mas se estendem até hoje. Mesmo recentes, elas mostram como o rio serviu de núcleo irradiador desses povos e ajudam a entender o mapa da migração e ocupação na região.
No final de novembro, a operação FPI (Fiscalização Preventiva Integrada) do rio São Francisco, que reúne vários órgãos oficiais, identificou mais três sítios arqueológicos: dois em Água Branca e um em Pariconha, ambos no sertão de Alagoas.
Ao todo, já são mais de 500 sítios registrados apenas na chamada tríplice divisa dos estados de Alagoas, Bahia e Sergipe. Há outros também em Pernambuco e Minas Gerais. As descobertas estão sendo estudadas pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
"É uma região muito importante para entender a ocupação de todo o território brasileiro", diz a arqueóloga do Iphan Rute Barbosa.
Mesmo nessa fase inicial de estudos, os achados têm causado surpresas positivas aos pesquisadores, que apontam a área como uma das principais do país em número de vestígios encontrados do homem pré-colonial.
Segundo Barbosa, desde 2017 teve início um projeto colaborativo de pesquisa mais aprofundada em Alagoas, que revelou uma área arqueológica muito rica. As escavações no chamado terraço fluvial do rio mostraram, por exemplo, que esses grupos usavam cerâmica.
"Ou seja, eles não eram só coletores-caçadores. Eles dominavam o meio ambiente e tinham conhecimento da área para manejo e uso da terra", conta.
Entre os artefatos, ela diz que já foram achados esqueletos datados de 8.000 anos atrás. "No caso das pinturas, a gente não consegue determinar tempo, mas pode ser muito superior [a 8.000 anos]. Era uma região habitada por diversos grupos étnicos", afirma.
Do rio ao interior do Nordeste
Uma explicação ajuda a entender o porquê dos povos ocuparem a beira do rio: a presença de água.
Agora os estudos tentam entender mais sobre a fauna e a flora da época.
"Há 8.000 anos, é possível que houvesse mais recursos naturais na região. Embora não saibamos exatamente, podemos supor esse cenário porque a região semiárida tem uma densidade enorme de sítios arqueológicos. Sabemos, inclusive, que alguns grupos indígenas da região chegaram a entrar em contato com portugueses que vieram ao Brasil durante o período colonial", explica.
“O rio São Francisco foi um núcleo de irradiação do homem para interior do Nordeste. Percebemos isso bem porque os afluentes são repletos também de sítios arqueológicos. É uma região que vem sendo constantemente habitada por grupos, alguns que fixaram moradia."
Clima e comunidade ajudaram na preservação
Os achados até aqui têm uma coisa em comum: o alto grau de preservação. Um detalhe que conta a favor disso, diz Rute Barbosa, é que o clima mais seco ajuda a conservar as pinturas rupestres ao longo das décadas. "Você vai ter menos umidade, menos precipitação, e isso é bom para conservar", diz.
Além disso, a arqueóloga cita que as áreas não foram danificadas por comunidades locais, que atuaram muitas vezes pela conservação devida das áreas.
“Essas descobertas problematizam muito o estigma de que o sertão era uma área abandonada e não habitada. A gente vê isso pela riqueza do patrimônio arqueológico da época pré-colonial. Essa ideia de o sertão ser um lugar tão árido e até inabitável é errada. Ao contrário, foi e é um lugar muito importante, e as pessoas tinham o manejo das áreas."
Turismo como impulsionador de renda
Diante de uma riqueza cada vez mais clara, o processo de reconhecimento agora passa a ajudar também moradores de uma região marcada por baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
"Causou-me grande impacto o envolvimento da comunidade que mora perto para preservação e turismo sustentável. É uma região bastante explorada de forma correta", diz Melissa Mota, superintendente do Iphan em Alagoas desde setembro de 2021.
Por conta do potencial e preservação de patrimônio, o Iphan junto com Sebrae e Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) está realizando capacitações para a população local. "Isso vai ajudá-los com uma economia criativa e na profusão da conservação desses sítios. Vamos replicar as boas iniciativas nos assentamentos da região com cursos", afirma.
Um dos bons exemplos de uso sustentável do patrimônio está no assentamento Nova Esperança, criado há 20 anos pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Olho D'Água do Casado, no sertão alagoano. Só o município tem 48 sítios arqueológicos registrados.
No local, as famílias viviam apenas da agricultura familiar, mas passaram a usar a seu favor o patrimônio histórico e natural. Hoje, o local é visitado, por exemplo, por turistas que vão conhecer os famosos cânions do São Francisco.
Além de guiar a visita pelos sítios e apresentar as relíquias, eles montaram um restaurante agroecológico e passaram a produzir e vender produtos feitos com itens da terra e artesanato.
"A gente via o turismo acontecer dentro do assentamento, mas trazido por empresas de fora. O Iphan então nos apresentou o complexo arqueológico. A gente sabia já de alguns sítios, mas não tínhamos essa conscientização de cuidar e preservar", conta Ana Paula Ferreira da Silva, presidente da Associação Pegadas na Caatinga.
Ela diz que, a partir dessa associação (criada oficialmente em 2020), a comunidade se envolveu e começou a produzir para lucrar com a beleza e importância do patrimônio natural da região.
Os sítios arqueológicos representam a esperança de dias melhores e sobretudo são símbolo de resistência de um povo que passou por aqui. Estamos dando continuidade a essa história, falando deles e preservando para que outros continuem participando dessa história."