Há anos, Pernambuco desfruta de uma situação econômica confortabilíssima, exaltada nas indústrias instaladas, no crescimento imobiliário e na Arena da Copa. Tal crescimento, que fez do Estado uma espécie de Eldorado, não está refletido no Semiárido, que sofre sua pior estiagem em 40 anos. De hoje até terça (20), o Jornal do Commercio traz as histórias daqueles que, convidados a participar do consumo festejado pelo mercado, precisam optar entre alimentar a família e os animais ou manter os bens que adquiriram quando a seca parecia ser um problema do passado. Não fazem parte, hoje, das abastadas classes A ou B, nem das cobiçadas C, D e E. A eles, restou participar da classe seca.
Quando Edilma e Rozenildo se mudaram para a Fazenda Xilili, em Sertânia (380 quilômetros do Recife), a vida parecia boa: recém-casados, eles esperavam uma filha (Eloá, hoje com 2 anos) e deixavam Arcoverde, onde não havia trabalho, para morar de graça em uma das modestíssimas casas da fazenda. Em troca, tinham que cuidar dos animais e plantações de um proprietário que não se comprometeu a pagar qualquer salário, mas permitia que a família cultivasse hortas e criasse ali suas duas únicas cabras. No primeiro ano, foi possível colher melancia, feijão, milho, jerimum. Compraram mais animais. Rozenildo, vaqueiro de 23 anos, também se candidatava a pegar boi na caatinga, o que lhe garantia alguma renda: chegou a receber R$ 500 depois de capturar um animal dos mais brabos. Quando a paisagem começou a se ressentir dos meses sem chuva, eles não deram muita importância: há anos, aquilo não acontecia.
Seguiram investindo o pouco que tinham em algum conforto. A televisão antiga quebrou, foi para o conserto, voltou, quebrou de novo. Aproveitaram e compraram outra, menor, com ela veio a parabólica necessária para ver o que se passava no mundo. Os equipamentos saíram por R$ 250, ambos de segunda mão. Em outubro deste ano, quando completou-se um ano sem qualquer gota de água caída do céu, Edilma, 22, viu o marido devolver a antena ao antigo dono. Não conseguiram pagar por um dos únicos bens de consumo que adquiriram naqueles dois anos trabalhando pesado. Pareciam estar impedidos de entrar naquele brilhante universo exaltado tanto na propaganda do governo quanto nos jornais e na TV, aquele mundo de consumo que sugeria trazer felicidade instantânea a quem dele participasse. Por instantes ele pareceu possível, mas faltou água. Logo, o Estado dos grandes investimentos, da refinaria e do estaleiro, o Eldorado das grandes fábricas e das rodovias, foi totalmente ofuscado pela paisagem magra e ressentida, por todas as cabras vendidas, por aquela pequena TV sempre apagada.
Eloá, Edilma e Rozenildo fazem parte dos mais de um milhão de sertanejos pernambucanos afetados por aquela que é considerada a pior seca dos últimos 40 anos no País. Eles não são novidade para nós: conhecemos bem seus rostos e histórias, conhecemos o cenário repleto de galhos secos que os envolve. São, todos eles, de tão cristalizados em nosso imaginário, verdadeiros mitos ? e mitos não são fáceis de serem repensados.
Ao mesmo tempo, Eloá, Edilma e Rozenildo fazem parte de uma seca nunca vista no Brasil nem em Pernambuco: é a seca que acontece em um Estado que, entre 2007 e abril de 2012, recebeu ou expandiu 192 indústrias atraídas pelos benefícios fiscais do Programa de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco (Prodepe). É a seca que acontece, quase obscenamente, no mesmo Estado que arrecadou, no mesmo período, cerca de R$ 2,214 bilhões em investimentos trazidos por essas mesmas empresas, geradoras, de acordo com números divulgados pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, de quase 24 mil empregos.
Esses números, que parecem transformar Pernambuco em uma espécie de Eldorado nordestino, esvaziam-se frente à imagem de Rozenildo puxando um burro magro e sem nome sob o sol intenso das estradas de Sertânia. O animal carregava Edilma e Roseni, bisavó de Rozenildo, além de Eloá, que dormia enquanto sua família voltava de uma visita ao distrito de Cruzeiro do Nordeste. Procuravam uma casa para morar, já que a seca inviabilizava qualquer trabalho na Xilili.
As 12 cabras? no momento em que acreditavam fazer parte das novas classes cortejadas pelo mercado, compraram mais 10 animais ? foram vendidas, de tão magras, pela metade do preço. ?Na rua é mais fácil arrumar qualquer bico?, diz o rapaz, preparando-se para trocar o nada absoluto da fazenda pelo quase nada do distrito ? e o quase é a esperança de encontrar algum trabalho e consequentemente, dinheiro. Uma semana depois da entrevista, saíram da Xilili para morar em uma casa de taipa que precisou sofrer reparos. Estava muito velha. Roseni seguiu com eles: não tinha mais a horta, vendera suas 20 cabras. Edilma estava feliz. ?Na fazenda, eram apenas nós, os bichos e a seca. E o sol.?
RENDA - Na zona rural de Serra Talhada, Maria Ivanize, 76, e Domingues Nogueira, 75, também deixaram a casa localizada ali perto, na Serra Vermelha, para ir morar em outro lar, à beira da pista. Os dois têm mais sorte que a família de Sertânia: a casa nova, grande e iluminada, pertence a um dos filhos, que vive em São Paulo. Duas cisternas abastecidas pelo Exército seguram a vida dentro de certa normalidade: é possível bebê-la, cozinhar o feijão, lavar roupa. Cada um recebe um salário mínimo de aposentadoria, o que garante R$ 1.244 ao mês.
Mas a estiagem unifica, à sua maneira, aqueles que o mercado costuma apartar em classes A, B, C, D, E: o casal vendeu as 18 cabeças de gado e ficou com 80 ovelhas, menos dispendiosas. Ainda assim, gasta R$ 836 por mês para mantê-las alimentadas. O dinheiro da aposentadoria não dá conta das despesas: ?É um salário para comer e comprar remédio, o outro para alimentar os bichos?, diz Domingues. São tempos bem diferentes: há cinco anos, ele chegou a ter mais de 300 bodes. Dez anos antes, em 1996, plantava algodão, que ele chama de ?ouro branco?. A bonança, como acontece com todos, o animou a investir: comprou uma casa no Centro de Serra Talhada. Depois, vendeu duas vacas e 120 ovelhas, apurou R$ 8.500 e comprou outra. De cinco anos para cá, diz que tudo o que conseguiu ?adquirir? foram algumas doenças. ?Antes, nossa conta era de multiplicar. Depois, passamos para a de somar. Agora, é só conta de diminuir.? Maria também é sintética: ?As quatro letras da seca estão acabando com tudo?.
Na sala, dois bens destacam-se: o quadro animado de Jesus Cristo, cujos olhos abrem-se ou fecham-se dependendo de onde o observador se coloca (?trouxeram de Juazeiro, foi uns R$ 30?, diz Maria), e uma TV CCE branca, LCD, de 32 polegadas. Foi comprada no Centro de Serra Talhada, onde as lojas começaram a ver a procura por bens como geladeiras, motos e celulares, símbolos de inclusão um tanto manca, caírem (leia matéria na próxima terça-feira). Domingues está pagando o produto em seis parcelas de R$ 133. Como não gosta de dever (?não durmo direito se isso acontece?), vai sacrificar parte do dinheiro voltado à ração das cabras, para pagar em dia. Afinal, a TV é a companhia de Maria durante as manhãs, quando ela fica sozinha na casa enquanto Domingues cuida das cabras
CINQUENTINHA - Com um padrão de vida similar (boa casa, possui cisterna, vive em fazenda), Gilzete Nogueira, 72 anos, cunhada de Domingues, viu pela primeira vez na vida, apesar de ter passado por secas anteriores, alguns de seus animais morrerem de sede e fome. Três deles foram embora, restaram 19 bichos, entre vacas e garrotes. Estão muito magros. ?A gente só dá um engano a eles. Se for alimentar direito, gasta uns R$ 2 mil por mês. Assim, gasto uns R$ 600.? Também vive com dois salários mínimos (sua aposentadoria e a do marido, falecido). Não falta água para a família: a cisterna que abastece tanto a casa de Gilzete quanto a do filho que mora ao lado guarda um pouco da boa água da chuva. É o máximo de luxo que as sete pessoas da família possuem hoje: água limpa. Sem condições de trabalhar na roça ? não colheram nada do ano passado, não plantaram nada este ano ? tiveram que ir até o comércio de Serra Talhada e se endividar.
Um dos filhos, Cláudio comprou um compressor por quase R$ 2 mil para consertar as rodas dos carros que passam na estrada à frente da fazenda (na entrada, encostado em um mandacaru, um pneu velho serve de base para o anúncio ?borracharia?). Esperam, com a oficina improvisada no terraço, manter os animais, comprar comida, pagar as contas ? inclusive a conta do compressor.
Contam com o dinheiro incerto de outro filho, Antônio, que ganhou da mãe uma motocicleta de segunda mão há quase dois anos, quando a chuva começou a rarear. Com a ?cinquentinha? (como é chamada a motocicleta popular que é um dos ícones da inclusão brasileira que se dá pelo consumo, e não pela garantia de direitos básicos como saúde e educação), ele trabalha como mototaxista. Transporta basicamente os assentados que moram perto da barragem de Serrinha, onde ainda resta água. Cobra de R$ 5 a R$ 10 por corrida.
Para conseguir passageiros, passa parte do dia sob uma espécie de parada e ponto de encontro construído à beira da rodovia, o mesmo local onde seu pai morreu após um ataque cardíaco há quase sete anos. Está enterrado na fazenda, no mesmo túmulo de dois irmãos de Antônio, que foram embora sem saber que a família passaria, naquele novo Brasil, naquele Estado que se orgulhava de seus estaleiros e refinarias, por uma seca similar à de mais de 40 anos atrás.