RAFAEL BALAGO
NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) - Abortar nos Estados Unidos não é mais um direito, decidiu a Suprema Corte do país nesta sexta-feira (24). A sentença, que reverte uma decisão que havia sido tomada pelo mesmo tribunal há 49 anos, traz grandes impactos para a vida das mulheres e para a política americana.
A mudança não proíbe o aborto no país, mas abre espaço para que cada um dos 50 estados adote vetos locais. A corte considerou como válida uma lei criada no estado do Mississipi, de 2018, que veta a interrupção da gravidez após a 15ª semana de gestação, mesmo em casos de estupro. Os juízes usaram este caso como oportunidade para derrubar outra decisão, de 1973, conhecida como Roe vs. Wade, que liberou o procedimento no país.
Nos anos 1970, os juízes haviam relacionado o aborto com o direito à privacidade, ao considerarem que os governos não poderiam interferir em uma escolha de foro íntimo da mulher -a de manter ou não uma gestação. O direito à privacidade é garantido por duas emendas à Constituição dos EUA, a 9ª e a 14ª.
No processo atual, chamado de Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization, a maioria dos magistrados adotou posição oposta e considerou que relacionar o procedimento com o direito à privacidade não faz sentido.
Assim, estados com governos conservadores, como Texas e Flórida, devem tirar esse direito de suas moradoras, enquanto regiões sob comando progressista, como Califórnia e Nova York, o manterão. Assim, a mudança deve afetar especialmente as mulheres mais pobres dos estados conservadores, pois elas têm menos condições para viajar até outro estado onde o procedimento é autorizado.
Projeções feitas pela imprensa americana apontam que ao menos 23 estados devem banir o aborto de modo quase completo após a decisão da Suprema Corte. Nos últimos anos, vários estados governados por republicanos tomaram medidas para dificultar o acesso ao procedimento, em um esforço para ir corroendo esse direito aos poucos.
Uma lei federal para liberar o aborto no país todo pode ser elaborada, mas as chances de o Congresso atual aprovar uma proposta dessa são mínimas. Republicanos, que se posicionam contra o aborto, têm poder para barrar a medida no Senado. E não há consenso entre democratas para tentar mudar as regras que permitem à oposição bloquear a aprovação de propostas assim.
O fim do direito ao aborto já era esperado desde o começo de maio, quando um rascunho da decisão sobre o tema foi revelado pelo site Politico. Depois disso, houve uma série de protestos pelo país, e a sede da Suprema Corte passou a ser protegida por grades.
Grupos de defesa de direitos das mulheres já haviam convocado protestos contra a medida em várias cidades do país, para serem feitos no dia em que a decisão fosse divulgada.
A mudança histórica de posição veio depois que o tribunal passou a ter maioria de juízes conservadores, um legado de Donald Trump, presidente de 2017 a 2021. Ele conseguiu indicar três magistrados, com ajuda de senadores republicanos. Seus aliados impediram o presidente Barack Obama de fazer uma nomeação em 2016, ao final de seu mandato, e correram para garantir que Trump apontasse mais uma juíza em 2020, semanas antes da eleição que ele perdeu.
Neste momento, os EUA estão em meio à campanha eleitoral para as midterms, votação em novembro que renovará governos estaduais e boa parte do Congresso. Muitos candidatos democratas devem usar a questão para atrair eleitores progressistas, com a promessa de ajudar a liberar o aborto em estados onde haverá veto e de proteger outros direitos. E republicanos devem reforçar sua posição contra o procedimento e destacar que o partido conseguiu entregar o veto que buscava desde os anos 1970.
A decisão de Roe vs. Wade mudou profundamente a política americana e, indiretamente, ajudou a torná-la mais polarizada. O combate ao aborto se tornou uma causa que une conservadores e líderes religiosos no país, que esperavam vetar a prática de vez. Eles passaram anos fazendo tanto grandes protestos pelo país quanto pequenas ações, como passar horas em frente a clínicas de aborto para tentar convencer as mulheres a desistirem do ato.
Uma das táticas para derrubar Roe vs Wade foi debater até quando as mulheres poderiam abortar. A decisão de 1973 definiu que o procedimento era totalmente livre no primeiro trimestre da gravidez (12 semanas), liberado com algumas restrições no segundo trimestre e só poderia ser vetado na terceira parte da gestação.
Em 1992, a corte julgou outro caso (Planned Parenthood vs. Casey), no qual confirmou o direito ao aborto, com uma alteração: passou a considerar o conceito de viabilidade fetal: as mulheres podem abortar sem restrições até o momento em que o feto fosse capaz de sobreviver fora do útero, o que tende a acontecer geralmente após 22 semanas.
Nos últimos anos, esse prazo foi sendo encurtado por leis estaduais. A norma do Mississipi, agora validada pela Suprema Corte, definiu o limite de 15 semanas. Uma lei do Texas, aprovada em setembro de 2021, impede o procedimento a partir de seis semanas de gestação, momento em que muitas mulheres ainda não descobriram estarem grávidas. A regra texana considera que o feto é viável se o coração está batendo. Em maio, Oklahoma foi mais longe e aprovou um veto ao aborto desde o momento da concepção.
A mudança atual dá força a políticos conservadores para tentar novos passos, como propor leis que impeçam as mulheres de irem a outro estado para abortarem ou punir quem ajudá-las a buscar o procedimento. A lei do Texas abre espaço para que mesmo o motorista que transporte uma mulher a caminho de uma clínica possa ser punido, mesmo que ele não saiba da intenção dela.
Para os progressistas, há o temor de que a Suprema Corte reveja outras decisões, como a liberação do casamento homoafetivo, de 2015. Em reação à onda conservadora, grandes empresas americanas, como Apple e Citibank, criaram programas para ajudar mulheres a viajar para locais onde podem abortar de forma legal.