O que era para ser uma espécie de confessionário virtual, um espaço para as pessoas desabafarem angústias anonimamente, está se tornando uma dor de cabeça para pais, professores e estudantes. Lançado no início do ano nos EUA, o aplicativo Secret desembarcou em maio no Brasil e, recentemente, virou febre entre os jovens. Por não identificar o autor das postagens compartilhadas, no entanto, o programa está sendo usado para a prática de bullying e, em casos mais graves, a disseminação de imagens de jovens nuas. Por isso, já virou alvo de investigações da Polícia Civil e tópico de debate em diversas escolas do Rio.
Renata (nome fictício), de 16 anos, foi uma das vítimas. Aluna de um colégio particular carioca, ela teve exposta na rede uma foto íntima enviada a um rapaz com quem saiu há meses.
-Tão logo instalei o app, vi aparecerem fotos de meninas do meu colégio. Como havia mandado uma imagem minha para um menino, fiquei com medo — conta ela. — Aí, na última quarta-feira, fui avisada de que minha foto estava no app. Meus amigos chegaram a denunciar a foto, que foi excluída, mas alguns a copiaram.
Desde então, o hábito de frequentar o colégio tem sido torturante para ela:
— Na escola, todos ficam me olhando e comentando. Estou péssima, porque não posso botar o pé na rua sem que isso aconteça. É muito constrangedor. Choro todos os dias.
Apesar do caso, Renata diz que não quer procurar saber como a foto se espalhou, por temer a reação dos pais.
— Não vou falar pra eles, porque tenho vergonha e medo da reação. E nada que eu faça vai apagar a foto de todos os celulares. Prefiro deixar assim — afirma ela.
O caso da jovem não é único. Na última sexta-feira, em São Paulo, um grupo de usuários do Secret liderados pelo DJ Bruno de Freitas Machado, de 25 anos, informou que entraria na Justiça para tirar o app de circulação após ter imagens íntimas e mensagens difamatórias espalhadas nele. O caso movimentou as redes sociais; no entanto, é nas escolas que o aplicativo tem gerado maior impacto, quase sempre negativo.
No colégio da rede MV-1 de Campo Grande, Zona Oeste do Rio, o Secret virou caso de polícia. Sentindo-se difamada por alunos no serviço, uma das coordenadoras da unidade chegou a fazer um boletim de ocorrência em uma delegacia. O GLOBO entrou em contato com a rede MV-1, que confirmou o caso, mas não quis detalhá-lo.
Juíza de uma Vara de Família no Rio, Andréa Pachá diz que a polêmica envolvendo o uso do aplicativo, como ferramenta de difamação e bullying pelos jovens, a preocupa por mostrar um problema nos limites éticos de parte da juventude que cresceu conectada:
- A sensação que dá é que a evolução da tecnologia não está sendo acompanhada da evolução humana, e não estamos sabendo lidar com isso junto aos nossos filhos — afirma ela. — O problema é o limite ético. Muitos jovens já veem a invasão de privacidade como algo natural. Eles não têm o cuidado e o amadurecimento para perceber o impacto que a disseminação de uma foto de uma jovem nua, sem o seu consentimento, pode ter. Isso tudo é muito preocupante.
Para a juiza, o caso mostra como, apesar de pregarem ter uma mente aberta, muitos jovens da geração conectada são, na verdade, bastante moralistas e, principalmente, machistas:
— Nesse caso, impressiona a crueldade com que os jovens estão espalhando fotos de conhecidos e mensagens de difamação, a troco de nada. E as maiores vítimas são sempre as meninas, julgadas por expressar a sua sexualidade.
MATÉRIA ATÉ DE PROVA
Diante da ascensão do app, alguns colégios resolveram se antecipar e já preparam professores, pais e alunos para discuti-lo. É o que acontece no Colégio Andrews, na Zona Sul do Rio, que incluiu o tema nos debates das aulas de Filosofia, Sociologia e Língua Portuguesa: uma reportagem sobre o app servirá ainda como texto de uma prova de Português para alunos do ensino médio, e advogados foram chamados para conscientizar pais e professores sobre a importância da privacidade na rede.
De acordo com a orientadora pedagógica da escola, Beatriz Miné, o assunto surgiu ainda em sala de aula, entre os alunos, e coube à equipe do colégio trabalhá-lo de modo produtivo.
— Não podemos pedir a ninguém para não usá-lo, só obrigamos os alunos a desligarem os celulares na aula — diz Beatriz. — Mas nosso papel principal é incutir neles a ideia de responsabilidade no mundo digital. Lembrá-los do Marco Civil da Internet, da questão do anonimato e dos crimes que isso pode causar.
Professor de Biologia e coordenador do Andrews, André Junqueira é testemunha da ascensão do aplicativo e, por consequência, de casos de excessiva exposição de menores:
— Soube de alguns casos de meninas que saíam à noite no final de semana, e na segunda o bairro inteiro já sabia o que elas tinham feito e não tinham feito. Tem até alguns que usam o Secret para o bem, mas a maioria usa para denegrir o outro, infelizmente.
Enquanto advogados orientam pais e professores, nas unidades do Colégio e Curso pH a conversa virou tempo obrigatório para cerca de dois mil alunos dos anos finais do ensino fundamental, e do ensino médio. Desde ontem, os estudantes recebem palestras com profissionais da área jurídica, auxiliados por psicólogos que debatem todas as questões éticas por trás do Secret.
— Tem uma série valores morais que estão sendo jogados por terra com o app — diz o diretor de ensino do pH, Rui Alves Gomes de Sá. — Por isso, nossas psicólogas debatem se o anonimato é válido, assim como as consequências. Já os advogados lembram a eles que todo ato tem consequência na internet, mesmo no anonimato. Ninguém fica impune.
Educadores chegaram até a baixar o Secret para tentar acompanhar mais de perto o comportamento de seus estudantes. Esse foi o caso de Betânia Pereira de Almeida, coordenadora do Colégio Cedap de Campo Grande. Ela conta que soube da existência do aplicativo pelos próprios alunos e, após ter ciência de difamações entre eles, resolveu ter o app no próprio ceular. Na semana passada, Betânia chamou duas estudantes para conversar e tentar intermediar conflitos entre elas.
— Elas falam mais comigo do que com os próprios pais, talvez por medo de sofrerem retaliações em casa. Por isso, a escola não pode ficar de braços cruzados assistindo a tudo isso - conta Betânia, que já passou por 10 turmas alertando sobre os perigos do Secret.
ANÔNIMO, MAS NEM TANTO
Após ser alvo de insultos no app, o advogado Fernando Gouveia procurou os responsáveis pelo Secret para saber como proceder. Ele foi instruído a seguir um procedimento simples para denunciar a postagem: clicar nas reticências na parte inferior da imagem ou deslizar o dedo na tela da direita para a esquerda.
— Tirar a publicação do ar é fácil. É só denunciar e mandar um e-mail para legal@secret.ly que eles removem o conteúdo prontamente — explica ele.
E se a vítima levar o caso à frente, é possível descobrir o autor da postagem e abrir processo cível por danos morais e, dependendo do caso, criminal. Apesar do anonimato no app, a política de privacidade do Secret informa que são coletados dados sobre o “tipo de navegador, horários de acesso, endereço de IP, publicações vistas e curtidas e a página visitada antes de navegar pelo serviço”.
O especialista em Direito Digital José Antonio Milagre recomenda que todos que se sentirem prejudicados por informações publicadas no aplicativo procurem uma delegacia de polícia especializada ou um advogado. Antes de pedir a exclusão da postagem, a vítima deve gravar uma cópia que poderá ser usada como prova nos tribunais. E os colégios devem se precaver aplicando soluções de segurança para as redes Wi-Fi.
Presidente da ONG Safernet Brasil, Thiago Tavares diz que o problema não é do app Secret em si, mas do mau uso feito por ele pelos jovens, e que só pode ser resolvido por meio do aumento dos esforços em prol da educação e da consciência sobre questões digitais junto aos adolescentes.
Ele reforça ainda que os jovens que tenham imagens íntimas vazadas não encarem a situação como “o fim do mundo”. Ele também reforça que os pais e educadores devem acolher esse jovem, e não julgá-lo, ajudando-o a buscar as medidas legais para remover o conteúdo da rede e identificar o responsável pelo vazamento:
— Isso inibe novos casos e ajuda a acabar com a noção de que a internet é terra de ninguém.