Karina Ninni | Agência FAPESP – A esclerose sistêmica afeta uma em cada 20 mil pessoas, em sua maioria mulheres na faixa dos 30 a 50 anos. É uma doença reumática autoimune, rara e agressiva, que compromete o paciente funcionalmente pela substituição de tecido normal por tecido cicatricial. Nos indivíduos que têm a forma mais grave, a mortalidade é de 30% a 50% em cinco anos.
Um dos tratamentos existentes é o transplante de células-tronco hematopoiéticas – aquelas capazes de se diferenciar em células especializadas do sangue e do sistema imune. Os mecanismos envolvidos no transplante vêm sendo estudados por cientistas do Centro de Terapia Celular (CTC) da Universidade de São Paulo (USP) que, em trabalho recente, estabeleceram o efeito do procedimento sobre o compartimento de células B do sistema imune (grupo de linfócitos responsável pela produção de anticorpos), correlacionando-o à melhora dos pacientes e sinalizando outras possíveis opções de tratamento futuras.
“Os pacientes com esclerose sistêmica perdem o que chamamos de tolerância imunológica, desenvolvendo linfócitos B e T autorreativos, ou seja, que reconhecem e atacam tecidos do próprio organismo. O papel das células B na esclerose sistêmica ainda não é bem definido na literatura. Conseguimos descobrir um novo mecanismo de ação do transplante: as células B reguladoras são importantes para o controle da autoimunidade e remissão da doença logo após o tratamento”, resume Kelen Malmegrim de Farias, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP.
“Como a ideia nesse caso é tratar o sistema imunológico, pois é ele que agride o organismo do paciente, nossos resultados são bastante promissores. O transplante ainda é muito genérico, já que impacta todo o sistema imune, e também muito agressivo. Mas resultados como este mostram que, no futuro, talvez consigamos ser mais pontuais e focar somente nas células que interessam – e isso vale também para pacientes não transplantados, tratados com imunossupressores. Conhecendo o mecanismo de ação de cada célula envolvida, talvez consigamos desenvolver terapias mais específicas”, explica a reumatologista Maria Carolina de Oliveira, livre-docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
Oliveira enfatiza a gravidade da esclerose sistêmica. “A pessoa acometida pela doença não consegue se movimentar, em muitos casos não consegue sair da cama, é muito debilitante. A pele do rosto e das mãos engrossa, às vezes até a do tórax e do abdômen. Além de atingir a pele, pode endurecer ou paralisar órgãos internos como esôfago, estômago, intestino, rins, pulmões e coração. Quando afeta os pulmões, a pessoa sente falta de ar.”
Malmegrim e Oliveira são coautoras de um artigo recentemente publicado na revista Rheumatology, que tem como primeiro autor o biomédico João Rodrigues Lima-Júnior, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Biociências e Biotecnologia da FCFRP-USP. Ambas são também pesquisadoras do CTC, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP desde 2000 e formado por pesquisadores da USP e do Hemocentro Regional de Ribeirão Preto, entre eles médicos, biólogos, biomédicos, farmacêuticos e veterinários. O CTC é referência em pesquisa com células-tronco e terapias celulares no Brasil e a única instituição do país com tamanha experiência acumulada em transplantes para tratamento de doenças autoimunes, incluindo a esclerose sistêmica.
Transplante
Como explica Oliveira, a doença traz lesões irreversíveis (como a “mão em garra”, por exemplo), mesmo com o transplante. No entanto, o transplantado consegue voltar a realizar as atividades do dia a dia e vive mais tempo.
No CTC são transplantados casos graves, quando há comprometimento do pulmão ou de grande parte da pele. Desde 2004 a equipe já transplantou por volta de 120 pessoas, com resultados clínicos considerados muito bons. “Os pacientes têm melhora na pele e ganho funcional, conseguem voltar a trabalhar e a realizar atividades como dirigir, cozinhar ou cuidar da família. A parte respiratória, ao menos, estabiliza e há ganho de qualidade de vida. Já sabíamos sobre as evidências da melhora clínica, mas não conhecíamos os mecanismos envolvidos”, diz a médica.
O transplante é autólogo, ou seja, não é necessário doador. “Colhemos as células-tronco saudáveis do próprio paciente e as congelamos. Esse procedimento é todo feito no Hemocentro Regional de Ribeirão Preto, onde fica a sede do CTC. Então, ministramos ao paciente uma mistura de imunoterapia com quimioterapia, um mix de fármacos que destrói as células produzidas na medula óssea: as do sangue e as do sistema imune. Depois, descongelamos aquelas células-tronco e as colocamos de volta. E, assim, praticamente reiniciamos o sistema imunológico. As células-tronco vão gerar uma medula óssea nova, um sangue novo e um sistema imunológico novo, que deixa de agredir o organismo”, explica Oliveira.
Segundo ela, nem todos os acometidos pela esclerose sistêmica são elegíveis para o transplante. “Para aquele que tem a doença em forma muito leve não compensa o risco, pois é possível tratá-lo de maneira relativamente satisfatória com imunossupressores, que são os medicamentos geralmente utilizados. E para aquele que já está em estado muito grave, com muitas lesões irreversíveis, também não, pois ele correrá o risco do procedimento sem nenhum benefício. A seleção é uma das coisas mais difíceis do processo. Os médicos tendem a encaminhar para o transplante o paciente que já está muito gravemente acometido. É preciso um trabalho de alertar o reumatologista para diagnosticar e enviar o paciente a tempo para o transplante, ainda encarado por muitos profissionais como a última solução possível. Além disso, como se trata de uma doença rara, poucos têm experiência em lidar com ela, e o diagnóstico se confunde com o de lúpus e de artrite reumatoide”, relata Oliveira, lembrando que a idade-limite para o transplante no CTC é de 60 anos.
A médica esclarece que, após o transplante, o sistema imune demora algo em torno de dois anos e meio ou três anos para se reconstituir completamente. “Nós retiramos os imunossupressores do paciente, tomamos muito cuidado com infecções e, naturalmente, temos de refazer todas as vacinas da pessoa, que é acompanhada até cinco anos após o procedimento.”
Gatilho ambiental
Para fazer as análises necessárias para o estudo das células B, a equipe coletou o sangue periférico de 22 pacientes antes do transplante e depois de 30, 60, 120, 180 e 360 dias de sua realização. “Depois de ‘zerarmos’ o sistema imunológico, as células-tronco são infundidas e o sistema hematopoiético e imunológico vão se reinicializar. As células B, formadas na medula óssea, se recuperam mais rapidamente do que as células T, objeto do nosso primeiro artigo. Em um ou dois meses após o transplante já há a reconstituição do compartimento de células B. Assim, neste novo trabalho publicado na Rheumatology, nos concentramos no primeiro ano após o transplante. Avaliamos os pacientes um mês, dois meses, quatro meses e assim por diante, até um ano após o procedimento, focando nas células B”, explica Malmegrim.
As células foram analisadas por citometria de fluxo (método usado para examinar simultaneamente diversos parâmetros de células ou partículas em suspensão) e ensaios funcionais. Foram analisadas as características biológicas das células B, como a produção de citocinas, as vias de sinalização e a capacidade supressora das células B reguladoras. De acordo com Malmegrim, os resultados mostraram que, nos portadores da doença, há uma desregulação das células B. Antes do transplante há mais células B de memória, que produzem os autoanticorpos que atacam os tecidos do paciente; e menos população de células B jovens (chamadas pelos cientistas de naive), que ainda não aprenderam a reconhecer os antígenos (substâncias que desencadeiam a produção de anticorpos).
“Uma população importante de células B são as reguladoras: aquelas responsáveis por colocar um freio nas respostas imunes patogênicas do organismo, que podem levar a danos teciduais. Nos pacientes com esclerose sistêmica, essas células estão diminuídas em número e função. Depois do transplante, o número de células B reguladoras aumenta, bem como sua capacidade supressora. Além disso, após o transplante, o paciente começa a apresentar maior frequência de células B naive e as células B de memória diminuem”, revela Malmegrim.
A cientista menciona os estudos de correlação feitos posteriormente mostrando que, a esse impacto do transplante sobre as células B, correspondeu uma melhora clínica dos pacientes. E observa: “Só é possível manipular o sistema imunológico do paciente com tal grau de êxito porque, nas doenças autoimunes, não está envolvido apenas o fator genético. Se fosse assim, o transplante autólogo não funcionaria. Há sempre um gatilho: geralmente um fator ambiental que, aliado à predisposição genética, faz com que a doença autoimune seja desencadeada na pessoa. Ainda sabemos pouco sobre os gatilhos dessa e de outras doenças autoimunes.”
Atualmente, o transplante de células-tronco hematopoiéticas para tratamento da esclerose sistêmica não faz parte da lista de procedimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Também não integra o rol de procedimentos cobertos pelos planos de saúde privados. Oliveira afirma que essa inclusão é uma longa batalha dos profissionais da área.
“Europa e Estados Unidos já têm o transplante como tratamento-padrão, coberto pelos seguros ou planos de saúde. Aqui no Brasil temos batalhado para incorporá-lo ao SUS. Não é um tratamento caro. Na verdade, talvez seja até barato se compararmos ao custo que a rede pública terá para tratar o portador da doença pelo resto da vida com internações, oxigênio etc.”