As unidades básicas de saúde, porta de entrada do SUS, entraram na mira de um programa de concessões e privatizações do governo, o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos). Um decreto que inclui a política de atenção primária em saúde dentro do escopo de interesse do programa foi publicado nesta terça (27) no Diário Oficial da União. A medida gerou reação de especialistas e entidades em saúde, que temem uma "privatização" na área, hoje um dos pilares do atendimento no sistema público.
O decreto é assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Na prática, o texto prevê que sejam feitos estudos "de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de unidades básicas de saúde".
A ideia do governo é estruturar projetos-piloto para esse tipo de parceria. A seleção ficaria a cargo da Secretaria Especial do PPI no Ministério da Economia —no decreto, não há menção ao Ministério da Saúde.
Segundo o PPI, o principal ponto do projeto é "encontrar soluções para a quantidade significativa de unidades básicas de saúde inconclusas ou que não estão em operação no país". Questionado sobre qual seria a contrapartida ao setor privado, o programa disse apenas que a medida está em análise de possíveis "modelos de negócios".
A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada de 17 a 21 de março de 1986, foi um passo definitivo para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Foram cinco dias de debates, com mais de quatro mil participantes, em 135 grupos de trabalho. O objetivo: pensar um novo sistema de saúde nacional, fomentando as discussões para a futura Constituinte.
Na 8ª Conferência, foram elaboradas as diretrizes para a construção de um sistema descentralizado e único de saúde para todo o país. A saúde foi afirmada como um dever do Estado e um direito de todo cidadão. Também foi discutido como seria o financiamento do setor.
"Importante destacar que caberá ao PPI coordenar os esforços em busca da construção de modelos de negócios, mas a condução da política pública será realizada pelo Ministério da Saúde. Não se trata de delegar ao privado as funções de Estado, mas de aprimorar a prestação de serviços", informa.
O órgão diz ainda que trabalhará com o Ministério da Saúde e ao BNDES na definição de diretrizes para elaboração dos projetos, para, em seguida, selecionar municípios e consórcios "que tenham interesse nessas parcerias". "Sabemos do desafio de levar mais infraestrutura e serviços de qualidade a diversos municípios do Brasil e acreditamos que o modelo de PPPs será chave para alcançarmos os resultados que a população tanto merece”, afirmou, também em nota, a secretária especial do PPI, Martha Seillier.
Ainda não há estimativa de quantas unidades podem ser incluídas nessas parcerias. Atualmente, o país tem 44 mil unidades básicas de saúde. A Folha questionou quantas outras estão fechadas ou não tiveram obras concluídas, mas não teve resposta até o momento.
A possibilidade de abrir espaço para o setor privado na construção e funcionamento destes postos, no entanto, tem gerado reação de especialistas e entidades na área da saúde.
Em vídeo divulgado nesta terça, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, disse ver na medida uma privatização dos postos de saúde. Segundo ele, o conselho realiza uma análise de eventuais medidas legais diante do caso.
Para Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a situação é "preocupante". "Embora coloque como estudo-piloto, as coisas começam assim. Isso é a porta aberta para a desconstrução do SUS. Não se sabe se vão respeitar as condições do sistema", afirma ela, que questiona a falta de consulta, pelo governo, a entidades de saúde sobre a proposta.
Avaliação semelhante sobre os riscos da medida é apontada por Ricardo Heinzelmann, da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), que reúne médicos que atuam na atenção básica.
Para ele, a situação ameaça políticas nacionais que ocorreram pela atenção básica —caso da Saúde da Família, que ajudou a reduzir indicadores de doenças crônicas e mortes no país. "Qual seria o interesse do setor privado para atuar nesse nicho do mercado?", questiona.
"Há risco de se perder ações importantes da saúde da família, como a abordagem comunitária. Falamos de uma população vulnerável", completa. Heinzelmann vê uma diferença na proposta em relação ao modelo das OSS (organizações sociais de saúde), que funcionam em parte do país.
"As OSs não constroem, enquanto a PPP vai além nisso: ele poderia construir e ser como um proprietário daquele serviço. Há um avanço maior no campo da privatização quando falamos nessa lógica", diz. Questionado sobre os riscos apontados pelos especialistas, o Ministério da Saúde não respondeu.