Zona Leste ainda mistura elementos urbanos com rurais

“Da mandioca, a gente produz a farinha, a goma, não sobra nada. E a casca ainda serve de alimento para os animais”

Fabricação de farinha e goma são ofícios ainda possíveis de se ver em área que mescla zonas urbana e rural. | Reprodução/Jornal Meio Norte
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Há pouco mais de dez anos, nem se imaginava que a região onde hoje estão situados os conjuntos habitacionais, na região do Vale do Gavião, estaria tão desenvolvida quanto hoje.

O fato é que o crescimento da cidade é progressivo, mas mesmo com esse incremento, algumas marcas inerentes ao meio rural ainda persistem.

Entre prédios, supermercados, faculdades e toda aquela estrutura de um cenário tipicamente urbano, a criação de animais, plantações e toda a cultura de interior ainda busca espaços para sobreviver dentro da cidade.

No Jardim do Vale, localidade que fica na região do Satélite, uma casa de farinha é uma grande marca de uma vivência tipicamente rural. Essa tradição secular, que ainda movimenta uma dúzia de pessoas que aprenderam a viver da subsistência das plantações, mostra que, embora a cultura tenha sofrido adaptações do meio e a desvalorização da prática em virtude do próprio desenvolvimento social, muitos preferem continuar com o ofício pelo simples prazer em fazê-lo.

Lúcia de Fátima nasceu em José de Freitas, cresceu em União e mora há 24 anos em Teresina. Desde cedo aprendeu com o pai todos os processos de plantação e utilização dos recursos naturais.

Há 18 anos montou a sua própria casa de farinhada, e de lá aumenta a sua renda, que vem apenas da aposentadoria. Para ela, a farinhada é mais que uma labuta, é um momento de descontração e, desse ofício, tudo se tira proveito.

?Aqui, tudo se utiliza. Da mandioca, a gente produz a farinha, a goma, não sobra nada. E a casca ainda serve de alimento para os animais?, conta.

Domingos Moraes trabalha na cidade desde 1979, mas nunca deixou a roça de lado.

Ainda hoje ele possui uma plantação no Árvores Verdes, na região da Cacimba Velha, e de lá tira a mandioca que origina a farinha e a goma que utiliza no seu dia a dia.

A única linha que produz é capaz de render em torno de 800 kg de mandioca, resultando na produção de oito sacas de goma e outras oito de farinha. Para ele, é um prazer participar dessas atividades e leva até mesmo o filho pequeno para aprender o ofício.

?Participo das farinhadas desde criança. Prensava massa e tudo, mas depois me casei, vim para a cidade e não fiz mais como antes. Embora a gente faça com prejuízo, já que nem tudo a gente vende, eu adoro fazer e participar de todos os processos?, conta ele, que no momento da entrevista dividia a atenção entre a farinha torrando no forno e a prensa da massa.

Modernização favorece ofício ainda braçal

O processo de produção da farinha e da goma é demorado e todo o processo, que compreende à ralagem, prensagem, secamento da raiz da mandioca e torra no forno demanda uma boa quantidade de tempo e trabalho humano.

Dependendo da quantidade de mandioca a ser processada, a farinhada leva cerca de três dias e precisa, em muitos casos, de mais de dez pessoas para concluir toda a produção.

A força e a prática são fundamentais nesse processo, e com o passar do tempo, a atividade também se valeu da modernização. O trabalho braçal é de suma importância para a realização do ofício, mas uma "mãozinha" da força mecânica é sempre bem-vinda, segundo afirma Lúcia de Fátima.

"Antes utilizávamos uma prensa de fecho de pau e agora utilizamos um parafuso. Isso melhorou e muito o nosso trabalho, pois ali exigia muita força e agora, a força que usamos, é menor. Antes era um sofrimento", lembra.

A qualidade do produto final depende exclusivamente da experiência de quem pratica o ofício. Não é para menos que quem participa das farinhadas tenha aprendido todas as técnicas com a família.

Afinal de contas, participar de farinhada desde cedo é uma prática bastante comum e muitas das mães ainda acabam levando os filhos e toda a família para participar.

Tradição ameaçada pelo urbano

Embora a produção de farinha e goma ainda seja realizada todos os anos na casa de farinha de Lúcia de Fátima, o ofício parece que está prestes a se perder em meio às lembranças daqueles que já participaram um dia dessa atividade.

Entre os tantos motivos para isso, a expansão constante do espaço urbano e de todas as suas diferenças no modo de se viver faz com que essa tradição fique ameaçada e aos poucos seja deixada para trás.

Enquanto quem produz afirma não ter mais condições de investir pelo pouco retorno financeiro, a proprietária do espaço alega a falta de pessoas para trabalhar na produção, já que os próprios filhos já não pretendem seguir com a tradição da família.

?Trabalho em roça não compensa nem mais no interior. Não tem saída o produto que a gente faz. A farinha, o pessoal costuma comprar dos supermercados, então fica tudo pra família mesmo. A goma é que ainda dá pra vender?, conta ele, que completa:

?Apesar da gente produzir com prejuízo, eu adoro fazer. Se a farinha tivesse saída, eu não deixaria de fazer. O problema é que os novos não sabem, não conhecem, por isso não tem mais quem faça e corre o risco disso tudo acabar?, conta Domingos.

Lúcia de Fátima se aposentou da lavoura e lamenta o fato de não conseguir mais prosseguir por muito tempo com a prática. Mesmo com as dificuldades, sobretudo físicas, ela ainda persiste com a tradição, mas acredita que não deva durar mais por muito tempo.

?Para mim, isso é a minha diversão. Mas o problema é a saúde que está faltando. Minhas mãos já não têm mais condição de continuar e minhas filhas também não têm tempo, elas têm outros planos também. Com isso, fica difícil?, lamenta.

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