?Eu não queria morrer. Então, uma certa manhã resolvi fugir, também em nome dos meus filhos que já não aguentavam tanta violência?, diz firmemente a mulher que ainda faz um esforço grande para não chorar, lembrando do dia que resolveu romper o silêncio e denunciar a violência que sofria dentro de casa pelo próprio marido.
Penha, nome que vamos dar para nossa personagem que não quis se identificar, em seu grito de basta, destoa de 68% das mulheres que têm medo, por uma série de resquícios culturais da sociedade em que vivemos, de denunciar os agressores. O dado é do Instituto Avon.
Penha é símbolo de uma sociedade ainda balizada pela pelo machismo em todas as esferas, e que encontra na violência a forma mais explícita de submissão da mulher ao homem. No caso de Penha, há outro tipo de violência, por vezes esquecido, é a chamada violência institucional, quando o próprio Estado demonstra que o que ainda vigora é o patriarcado, sistema em que o homem é privilegiado, em detrimento das mulheres.
Caracteriza-se como violência Institucional, quando a mulher sofre constrangimento, orientação inapropriada e omissão de atendimento por parte de órgãos públicos. Inclui também a falta de acesso e a má qualidade de serviços prestados. Quanto a este último, Penha sofreu, como tantas mulheres do interior que não dispõe de estrutura a qual possam recorrer.
Desde o dia em que ela saiu de casa, em 2010, vive as mais duras opressões, por parte do Estado. ?Quando eu fui denunciar, o delegado não quis registrar queixa e disse que não havia jeito de prender o agressor. No final não foi registrada a queixa e eu tive que me deslocar a outro município para fazer o exame de corpo de delito, pois nem isso ele queria fazer?, diz ela, contando que era visíveis os traços de violência em seu corpo.
Hoje ela ainda clama por liberdade e vive na casa Abrigo de Teresina, sob proteção, com seus filhos. Para ela estar com os filhos, hoje, é um misto de alívio e apreensão, já que motivados pela série de inverdades proferidas pelo ex-marido agressor, o estado acaba forçando Penha para que as filhas e o filho sejam entregues ao pai.
Lei Maria da Penha e os desafios
O caso da nossa personagem também demonstra as dificuldades de operacionalidade de Lei Maria da Penha onde a violência ainda hoje é encarada pelo Estado como um problema familiar. O conhecido ditado ?Em briga de marido e mulher não se mete a colher? ainda é uma máxima que norteia as ações de combate à violência no Brasil e também no Piauí.
Para a pesquisadora da UFPI, Profª Drª Maria Sueli Rodrigues, a Lei Maria da Penha foi uma conquista inquestionável dos movimentos sociais, no entanto, o problema é a forma como os Governos Federal e Estadual enfrentam o problema entranhado culturalmente na sociedade. Em sua pesquisa, Maria Sueli aponta que os primeiros artigos da Lei são justamente os que não são levados em conta para implantar uma real democracia entre os gêneros na nossa sociedade.
Os artigos dizem respeito a uma série de políticas públicas que deveriam ser implantadas de modo preventivo, desde ações educativas, assistência social e cultura. Para tantas mulheres que lutaram e ainda lutam pela efetividade completa da Lei Maria da Penha, as medidas preventivas vêm do reconhecimento de que suas lutas são indissociáveis de uma luta global, em uma sociedade que divide as pessoas entre classes e gênero, e torna as mulheres meros objetos de pertença pessoal.
A utopia de ver homens e mulheres livres é o que move tantas mulheres. Sueli, expressando quão numerosos ainda são os passos que reservam o caminho para esta liberdade, constata em sua pesquisa o inquestionável, a Lei vem apenas punindo homens, principalmente aqueles da classe trabalhadora. Ela conta que com a Lei aumentou o número de presos processuais, aqueles que não têm como pagar pela fiança. ?Ou seja, pune de novo aqueles que já são punidos socialmente?, pois desprovidos de uma situação econômica favorável. Com isso, o Brasil também viola os direitos humanos, que têm como um dos índices o número de pessoas presas.
A medidas preventivas levam em conta estruturas que pudessem dar conta dessas ações. Ao contrário disso, a pesquisa do Grupo de Maria Sueli aponta que o Piauí, e não é diferente em outros Estados, carece de investimento neste setor, cabendo apenas aos organismos que já existiam cumprir o papel de combate à violência. ?Com a Lei, não foi muita coisa que mudou, pois, as ações ainda são restritas ao Ministério Público, à Defensoria Pública, às Delegacias especializadas?, diz.
Outra problemática é a precarização das estruturas que não dispõem de recursos suficientes para desenvolver seus trabalhos. O que pode piorar ainda mais, pois o Governo Federal reduziu, em 2012, o recursos destinados à Lei Maria da Penha, em 6,3% comparado ao orçamento de 2011.
?Em nossas visitas para pesquisa, constatamos que a Delegacia especializada que melhor funciona na capital é da zona Sudeste. E mesmo assim, lá só tem um escrivão, uma delegada e um agente de polícia. E mesmo assim é muito comum não ter viatura disponível para acompanhar casos?, conta a pesquisadora.