Na terça-feira, um homem foi preso em flagrante após ter ejaculado em uma mulher dentro de um ônibus na avenida Paulista, uma das mais movimentadas vias de São Paulo. Menos de 24 horas depois, foi liberado após o juiz responsável concluir que o ato não seria estupro, mas sim uma contravenção penal - "importunar alguém em local público de modo ofensivo ao pudor" - passível de punição com multa.
A decisão provocou fortes reações nas redes sociais e gerou revolta entre movimentos de defesa dos direitos das mulheres, especialmente pela justificativa do juiz José Eugenio do Amaral para liberar o homem, que já tinha passagens na polícia por suspeita de estupro.
"O crime de estupro tem como núcleo típico constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado", dizia a decisão.
O episódio colocou sob os holofotes um problema cada vez mais recorrente no transporte público de São Paulo - segundo dados oficiais, a cidade registrou 288 casos de abuso sexual em ônibus, trens e metrô (pelo menos um por dia). De acordo com informações divulgadas pelo portal UOL, o número de casos registrados no metrô cresceu mais de 350% em 2016, se comparado com o ano anterior.
Mas para juristas e especialistas em Direito ouvidos pela BBC Brasil, esses casos expõem um problema na legislação: não há um tipo penal específico para classificá-los. Além disso, há uma dificuldade na interpretação da violência que não é física.
"O juiz considerou que era uma mera contravenção penal porque ele não consegue entender que existiu um constrangimento mediante violência. Isso porque ele só consegue entender como violência a violência física", afirmou à BBC Brasil a doutora em Filosofia do Direito e integrante do Comitê CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU), Silvia Pimentel.
"Mas existe a violência simbólica, moral, psicológica de um ato como esse. É interessante que se abra na sociedade um debate jurídico a respeito de verificar que o artigo 213 (da lei do estupro) pode ser legitimamente interpretado e aplicado quando, independente de violência física, exista outra violência como essas."
Entre dois extremos
Mas para além da questão de interpretação da "violência" nesses casos, outros especialistas apontam a dificuldade de penalizar esse tipo de ato de acordo com a legislação atual, que resume os crimes sexuais ou a "estupro" ou a "perturbação ao pudor".
Segundo Silvia Chakian, promotora de violência doméstica do Ministério Público de São Paulo, o problema é que "ficamos entre um crime de uma pena muito branda (contravenção penal) ou vai para a outra ponta, que é crime hediondo (estupro)".
"Não temos na legislação um tipo penal que se encaixe nesse tipo de conduta. Para qualificar como estupro, os elementos precisam estar muito bem configurados - senão vai causar absolvição. E se não tem resposta penal adequada nesses casos, fica muito ruim. A sensação para essa mulher é de que a integridade fisica, psicológica, sexual dela não vale nada para a Justiça. A sensação para ele é de que saiu barato praticar esse ato."
Na decisão em que determina a soltura do réu, o juiz menciona a gravidade do caso, mas pontua que "penalmente, o ato configura apenas contravenção penal".
"O ato praticado pelo indiciado é bastante grave, já que se masturbou e ejaculou em um ônibus cheio, em cima da passageira, que ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada. Ademais, pelo exame da folha de antecedentes do indiciado, verifica-se que tem histórico nesse tipo de comportamento, necessitando de tratamento psiquiátrico e psicológico para evitar a reiteração de condutas como esta, que violam gravemente a dignidade sexual das mulheres, mas que, penalmente, configuram apenas como contravenção penal."
Diante dessa situação, Chakian defende a criação de uma nova tipificação criminal para esse tipo de ato, determinando uma punição intermediária. "A gente tem lei demais mesmo, mas existem formas de violência como essa que não têm tipificação adequada. E se você não nomeia, você não visibiliza o problema, você não colhe dados sobre ele nem pode criar políticas para combatê-lo", opina.
Segundo ela, outros países instituíram tipos penais intermediários para esse tipo de caso.
"Em Portugal, por exemplo, há uma classificação diferente para condutas onde não há penetração, coito. Outros países optam por colocar uma cláusula de diminuição de pena no estupro. Mas é um debate importante a se fazer aqui."
Pai quer prisão do filho
O pai de Diego Ferreira de Novaes, que foi detido na última terça-feira (29) após ejacular no rosto de uma mulher dentro de um ônibus na avenida Paulista, em São Paulo, criticou a decisão da Justiça de soltar o rapaz. A declaração foi dada em entrevista ao Jornal do SBT exibida na noite desta quinta (31).
Segundo o aposentado de 65 anos, que preferiu não mostrar o rosto, Diego é agressivo e pode voltar a cometer delitos. O rapaz já tem 17 passagens pela polícia por crimes sexuais, entre eles estupro e ato obsceno.
"O que deveria ter feito é o juiz prender ele. É perigoso uma pessoa dessa estar solta e o delito que ele pratica não é justo, né?", afirmou o pai de Diego. "Em casa, não posso ficar com ele, porque ele é um cara muito forte. Ele é agressivo, muito agressivo".
O rapaz foi liberado um dia após a detenção. A decisão foi do juiz José Eugênio Souza Neto, do Dipo, no Fórum da Barra Funda.
Na decisão, o juiz analisou que o caso não configurava estupro, mas sim atentado ao pudor –cuja pena, diferentemente do estupro (que prevê reclusão de seis anos), é de multa. A justificativa foi a de que Diego Novaes não teria usado de violência ou de grave ameaça para constranger a vítima.