“Filho, você está ouvindo a minha voz?”
— Estou, papai.
— Eu nunca ouvi a do meu pai. Estou indo agora para o Rio fazer isso. Na manhã do último dia 10, uma quarta-feira, o piloto de avião Thiago Nunes, de 44 anos, tomaria uma ponte aérea em São Paulo, onde vive com a mulher e o filho de 8 anos, para ouvir a voz do pai, o poeta e compositor Torquato Neto, pela primeira vez. Torquato suicidou-se aos 28 anos, em 1972, quando Thiago tinha apenas 2 anos. Desde então, o filho jamais ouviu qualquer registro da voz do pai, que ironicamente fez todo mundo cantar canções como “Pra dizer adeus” (“Ah, pena eu não saber, como te contar, que o amor foi tanto...”); “Mamãe, coragem” (“Mamãe, mamãe, não chore, a vida é assim mesmo, eu fui embora...”); “Geleia geral” (“Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia...”) ou “Soy loco por ti America”. Nem ele, nem a família, nem os biógrafos da Tropicália, movimento do qual Torquato foi um dos maiores expoentes.
OUÇA A ENTREVISTA DE TORQUATO NETO:
O poeta, que completaria 70 anos no dia 9 de novembro, deixou um acervo com fotos, poemas, colunas de jornal, entrevistas impressas, três filmes em super-8 (sem áudio). O material já rendeu livros, teses e servirá de base para o documentário “Anjo torto”, dos diretores Marcus Fernando e Eduardo Ades, com apoio do Canal Brasil, em fase de montagem.
Em reportagem publicada no Segundo Caderno em 11 de junho sobre o documentário, Marcus Fernando lamentou não ter encontrado qualquer registro de áudio de Torquato, apesar de ele ter participado de festivais da canção e de programas de rádio.
Ao ler o jornal, a notícia chamou a atenção do radialista gaúcho Vanderlei Malta da Cunha, de 66 anos, que lembrou na hora de ter feito, ele mesmo, uma entrevista com Torquato nos bastidores do IV Festival da Música Brasileira da Record, em São Paulo, em novembro de 1968. Não só com Torquato: naquela noite, Vanderlei, que aos 20 anos já tinha um programa dominical de música brasileira na extinta “Rádio Cultura”, uma rádio gaúcha AM, também gravara depoimentos do maestro Rogério Duprat, do músico Tom Zé (que ainda não sabia, mas seria o vencedor daquela edição, com a música “São São Paulo, meu amor”) e de Caetano Veloso, que tinha feito, dois meses antes (eram muitos festivais concomitantes), a participação histórica de “É proibido proibir” no III Festival Internacional da Canção (FIC), em que retrucava a plateia, sob vaias: “É essa a juventude que quer tomar o poder?”.
MOMENTO DE EXTREMA LUCIDEZ
Era, portanto, o auge do tropicalismo. O álbum-manifesto “Tropicália” tinha sido lançado havia poucos meses, e o público ainda tentava entender toda aquela proposta de revolução estética e musical.
— Naquele dia havia, entre os artistas, uma espécie de “ressaca” de tudo o que tinha acontecido no III FIC, as vaias, os protestos, a confusão, por isso, em determinado trecho da entrevista, Torquato ironiza a música de protesto — comenta Vanderlei, citando o trecho em que o compositor dizia: “Caminhando e cantando e seguindo a canção, seguindo mesmo, a canção lá na frente e eles lá atrás, a léguas de distância. (...) Esse tipo de trabalho não me interessa nem um pouco” — E eu ali, um menino, entrevistando meus ídolos. Eu nem era hippie, tropicalista, era um apresentador de um programa de música brasileira no Sul. Mas a poesia do grupo baiano me tocava profundamente.
Quando Vanderlei se deu conta das entrevistas que tinha feito, considerou a noite ganha. Tinha levado semanas até convencer a pequena rádio a financiar sua estadia em São Paulo para cobrir o festival. Hospedou-se no Hotel Danúbio, o mesmo em que os artistas ficavam, para facilitar a aproximação. Que se deu graças a Gilberto Gil. Foi o músico quem puxou o rapazote pelo braço e mostrou onde estavam os outros.
O maestro Rogério Duprat falou sobre suas inovações de arranjo: “A gente não aguenta ouvir o mesmo som de orquestra. Estamos pesquisando novas formas de manipular o som da orquestra, vendo se a gente consegue entortar geral. O momento atual da música popular todo está meio crítico. E o humor é a forma mais importante de crítica”. Tom Zé explicou por que fez uma canção amalucada sobre São Paulo: “Todo mundo tem mania de falar mal de São Paulo, então somente pra ser espírito de porco fiz uma canção falando bem, falando mal, tudo misturado, pra fazer confusão no espírito das pessoas”. E Caetano parecia contente com a confusão da sua última apresentação: “A gente tem que fazer alguma coisa, deixar as coisas paradas não corresponde às necessidades do nosso povo. Acho que a gente deve assustar as pessoas, chateá-las. Divertir e chatear”.
— Foi o pulo do gato. Se hoje esse áudio existe, é graças à generosidade de Gilberto Gil. E parecia que todos estavam com vontade de falar — lembra Vanderlei, por telefone, de Porto Alegre, depois de encontrar a gravação que estava silente em seu armário por 46 anos, enviando em seguida ao GLOBO, que repassou a pesquisadores de MPB e ao filho de Torquato, Thiago. — Acho que foi um dos últimos momentos de extrema lucidez de Torquato. Ele estava muito seguro do que faziam com o tropicalismo. Os anos seguintes foram muito melancólicos para ele, que foi para Londres, rompeu com os baianos, até o desfecho trágico. Mas, ouvindo-o falar hoje, passados tantos anos, tenho certeza: quem fez aquilo tudo e falava daquele jeito não queria ser esquecido.
Torquato sentou-se numa poltrona à entrada do teatro e respondeu às questões do jovem, que fez as perguntas de pé, segurando o gravador de rolo — não havia outro assento livre. Era franzino, narigudo e tinha o rosto marcado por espinhas, lembra Vanderlei. Vestia um camisa de manga curta e uma calça jeans. Estava tranquilo.
Falou sobre a relação do tropicalismo com o mercado (“Música é para vender, é batata, não adianta, tem que vender, se não não presta”); sobre a importância dos festivais da canção (“Eu acho que as melhores coisas que apareceram de uns três anos para cá em música no Brasil apareceram em festival”); sobre poesia (“Eu acho da maior importância o movimento concretista. Influenciou demais todo o meu trabalho, tudo o que venho tentando fazer”); elogia Caetano (“A poesia de Caetano em música é atualmente a mais importante do Brasil, é a mais rica, a mais sugestiva, a que indica mais caminhos”); e sobre tropicalismo (“Eu acho nosso trabalho importantíssimo pelo seguinte: é o que abre perspectivas. O tropicalismo é um negócio abrangente, totalizante”).
‘AINDA ESTÁ ECOANDO NA MINHA CABEÇA’
Ao ouvir a voz pela primeira vez, numa sessão caseira com os diretores do documentário, Thiago reagiu de maneira alegre, mas um pouco atônita. Estranhou o sotaque excessivamente baiano para um piauiense (“Ele falava igual ao Caetano!”) e lamentou o fato de os avós não estarem vivos (“Se minha avó tivesse ouvido isso, teria ganhado uma sobrevida”). Foi como se tivesse feito nascer, naquela sala, um novo pai.
— Eu nunca poderia imaginar que o ouviria... Já dava essa hipótese por perdida. Procuramos muito, mas nunca achamos nada. É uma sensação reconfortante, mas difícil de pôr em palavras. Infelizmente não sou bom como ele com as palavras — limitou-se Thiago, que no dia seguinte mandou a seguinte mensagem: — A voz dele ainda está ecoando na minha cabeça. Conversei longamente ontem com minha mãe sobre coisas de que nunca falamos. Estou muito emocionado.
Depois da audição, Marcus Fernando, diretor do documentário “Anjo torto” (que deve ficar pronto no início de 2015), fez uma análise do conteúdo da gravação:
— A importância dessa descoberta é gigantesca. É a oportunidade de chegar perto dele, através do sotaque, do ritmo da fala e do pensamento, bem resumido ali: a inquietação com os rumos da música brasileira, a valorização da letra de música como forma poética, a reflexão sobre a temática das canções (a obsessão com o Nordeste e a família), a influência dos concretistas em sua obra, a afirmação do movimento tropicalista (assumindo inclusive que um dos objetivos era conquistar mercado porque “disco é feito pra vender”), o desinteresse pela música engajada...
Professor de Literatura da PUC-Rio e autor de “Tropicália” (Azougue) e “Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado — Cultura marginal no Brasil” (Civilização Brasileira), Fred Coelho acrescenta que a fala de Torquato reproduz a “personalidade incisiva, provocadora, irônica, pilhada, pronta para o embate”:
— A fita ainda tem um traço trágico, de tristeza profunda, pois o vemos traçando planos no coletivo, quando sabemos que isso ia se desmanchar meses após esse papo. Ele perde parceiros, amigos, o lugar de intelectual de um movimento, vai pra Londres, onde tudo dá errado, volta e praticamente abandona a música, colocando o jornalismo e o cinema no centro dos interesses. E ouvir isso tanto tempo depois, uma voz que vem do além, um morto que fala pela primeira vez, como um Brás Cubas... Saravá.
Quem também parou o que estava fazendo, anteontem, para ouvir o amigo, e a si mesmo, tanto tempo depois, foi Tom Zé.
— Ao falar de assuntos simples, ele consegue dar opiniões de muita carga sígnica. Um dos assuntos a que Torquato se refere é uma coisa hoje esquecida, como se fosse impossível: no lançamento do tropicalismo, em 1967, a classe estudantil nos chamou de traidores da música brasileira — diz Tom Zé, de quem Torquato “roubou” a expressão “domingou” para batizar uma canção. — Foi um grande prazer e uma alegria ficar 20 minutos ouvindo aquela voz tão carinhosa e nordestina. Dá saudade.
ARQUIVO SERÁ ENVIADO A TERESINA E AO MIS
Coincidentemente, dias antes de Thiago receber — e ouvir — o arquivo enviado por Vanderlei, o escritor Marcelino Freire publicava um post intitulado “Procura-se a voz de Torquato Neto” no blog “Quebras”, que mantém no site do Itaú Cultural, no qual reporta uma longa expedição sobre culturas regionais que tem feito por 15 capitais brasileiras, como parte do projeto “Rumos”.
— A primeira cidade que passei neste projeto Rumos, onde vou buscando conhecer e mapear os artistas locais, contando tudo no blog, Foi Teresina. Lá, entrei em contato com muitos artistas jovens ainda hoje muito influenciados por Torquato, como o Thiago E., que edita uma revista linda, a “Acrobata”. Também conheci George, primo do Torquato que mantém seu acervo, e foi ele quem me chamou a atenção para a falta que fazia conhecermos a cor da sua voz, seu sotaque, seu timbre. Quando eu podia imaginar que na mesma semana alguém lá no sul acabava de achar um arquivo com a voz dele! — comemora Marcelino, em cujo post em tom de apelo se lê trechos como “Teresina é discreta e faz, podem ter a certeza, um grande movimento que inclui revistas de arte, desenhos, música, teatro, dança. Nós, bárbaros e barulhentos, é que temos dificuldade de escutar onde está a voz, onde se esconde, em que lugar andará a língua de Torquato. Ajudem-nos, urgente, a procurar.”
O arquivo será encaminhado ao responsável pelo acervo de Torquato em Teresina, o primo George Mendes, bem como ao Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio.
— Coloco essa fita à disposição depois de anos no armário, pois acredito que ela possa ter valor documental na pesquisa sobre a contribuição desta grande figura da cultura brasileira — declarou Vanderlei, ainda tocado com o próprio achado.
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