A violência vivida pela menina de oito anos mantida por duas semanas em cárcere privado e sob agressão sexual de um homem adulto, namorado da prima que a sequestrou, impressionou até mesmo profissionais que estão acostumados a lidar com vítimas de violência. Presa dentro de um guarda-roupa, a menina só conseguiu escapar do cativeiro porque achou um aparelho de telefone celular esquecido pelo sequestrador e acionou a polícia, que a libertou no domingo (28). A prima dela, adolescente, foi recolhida à Fundação Casa. O homem que a agrediu, foragido da Penitenciária de Tremembé, continua à solta.
Mestre em saúde materno-infantil e integrante do núcleo de violência sexual do Hospital Pérola Byington, a psicóloga Daniela Pedroso disse ao G1 que atende dezenas de vítimas por dia, mas nunca viu nada parecido em em mais de uma década de experiência. Daniela comparou o episódio ao enredo do filme "Silêncio dos Inocentes" (1991), no qual as vítimas são encarceradas por um maníaco. "Essa é uma situação atípica e de extrema violência. Esse caso foge muito do padrão", afirmou.
Professor de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove), Marcelo Feijó de Mello compara a agressão sofrida pela menina à violência que tirou a vida do garoto João Hélio, morto em fevereiro de 2007 no subúrbio do Rio de Janeiro, ao ser arrastado pelo cinto de segurança após o carro da família ser levado por assaltantes em fuga.
"Isso é uma coisa brutal e bárbara, um ato horrível. Infelizmente acontece, mas a gente classifica como um ato bárbaro de uma pessoa não tem respeito pelo outro, pela humanidade. Faz sem pensar nas consequências que isso vai ter em uma criança de oito anos. É igual aquele que arrastou o menino João Hélio pelo carro. É uma coisa incompreensível", afirmou.
Livre do cativeiro, a menina aceitou contar o que viveu, mas rejeitou dar detalhes sobre o que o homem fazia com ela. "Isso está mostrando que tem alguma coisa muito traumática, que está incomodando muito essa criança e que ela não quer revelar porque só de falar pode ter que lembrar e isso gera mal-estar. Outras vezes tem uma amnésia, uma coisa tão traumática que ela apaga da memória, mas fica com a impressão de que algo de muito ruim ocorreu lá. Pode ser também a síndrome de Estocolmo, segundo a qual a vítima acaba fazendo uma relação patológica com o sequestrador. É sinal de que essa criança precisa ser tratada", afirmou o professor Mello.
Para a psicóloga Daniela, a reação da menina pode ser interpretada de duas maneiras: "Ou simplesmente porque ela não quer falar sobre o que lhe aconteceu, pela própria questão da violência sexual, ou porque, em alguns casos, as ameaças sofridas são tão intensas e reais para a criança, que faz com que ela se cale diante do ocorrido e não verbalize nem após o fato vir à tona. Em alguns casos, o agressor ameaça a criança, dizendo que, se ela falar, sua mãe irá morrer. E isso é o suficiente para calar a criança."
A psicóloga e o psiquiatra são unânimes ao afirmar que a menina precisa de tratamento adequado, sob pena de ficar doente agora ou mais tarde, quando adulta.
"O abuso sexual é uma violência muito grave porque é uma atitude de imposição muito forte, um evento muito traumático. O poder que tem de desestruturar uma pessoa, no caso uma criança, que ainda tem menos recursos, é muito grande. Há grande chance de que essa criança possa desenvolver já no primeiro mês um quadro de transtorno de estresse agudo ou em algum tempo transtorno de estresse pós-traumático", disse o professor Mello.
"A gente sabe que o abuso sexual é um fator de risco para o desenvolvimento de doença mental muito grande. Pode ficar doente agora ou criar uma marca que pode fazer que ela tenha problema mais tarde", complementou. Segundo Mello, entre os adultos atendidos pelo Prove o maior fator de impacto são assaltos a mão armada. Entre as crianças, é a violência sexual.
A psicóloga Daniela afirma que "se não forem cuidados, vítimas de violência sexual podem apresentar dificuldades de relacionamento interpessoal, maior risco de envolvimento com drogas lícitas e ilícitas, gravidez na adolescência, comportamentos à margem da sociedade e episódios de depressão ao longo da vida."
O tratamento, entretanto, pode atenuar as marcas da violência, embora seja quase impossível apagá-las. "É possível se minimizar os efeitos da violência sexual sofrida, desde que a criança receba acompanhamento psicológico e sinta-se acolhida e amparada por sua família, comunidade e escola", disse Daniela Pedroso. De acordo com ela a abordagem psicológica é realizada através de atividades lúdicas, que envolvem brincadeiras, jogos e atividades gráficas.
O professor Mello afirma que o tratamento deve começar o quanto antes. "Não é possível apagar da memória, sempre vai ter essa experiência. Mas muitas vezes a gente consegue fazer com que no curso do tratamento a pessoa até consiga sair mais forte de uma coisa traumática desse tipo. Tem de ser tratado o quanto antes. A abordagem é multiprofissional, com médico, psicólogo, assistente social, psicoterapia e às vezes até medicação", afirmou.