O governo enviou ao Congresso, na segunda-feira passada, projeto de lei que torna mais rígidas as punições a empresas acusadas de corromper a administração pública. A proposta prevê, pela primeira vez, que o patrimônio das companhias possa ser retido para ressarcir os cofres públicos de prejuízos causados em fraudes em licitações, pagamento de propinas a funcionários públicos ou maquiagem de serviços e produtos vendidos ao governo.
Polêmico, o texto do projeto chega a propor o fechamento de empresas e estabelece uma série de punições que poderão ser aplicadas administrativamente. Criticada por alguns juristas e elogiada por lideranças empresariais, a legislação pode representar avanços, mas também traz riscos.
?Sentíamos a necessidade de coibir atos de corrupção além do uso da declaração de inidoneidade [medida que bloqueia novos negócios com a administração pública], que hoje é a punição mais rígida que podemos aplicar e a única que não precisa correr pela via judicial?, disse Jorge Hage, ministro da Controladoria Geral da União. ?Hoje, mesmo na Justiça, somente a pessoa física é punida, tampouco temos mecanismos para acessar o patrimônio das empresas para recuperar os prejuízos causados?.
No mais recente ranking publicado pela Transparência Internacional, em 2009, o Brasil aparece na 75ª posição entre 180 países pesquisados, empatado com a Colômbia e o Peru. Na liderança, como o país onde há menos corrupção no setor público, está a Nova Zelândia. O Brasil fica atrás de países como Turquia (61ª) e Gana (69ª), mas à frente da Argentina (106ª) e do Paraguai (154ª). A ONG estima que somente nos países emergentes as empresas privadas gastem US$ 40 bilhões por ano para subornar políticos e funcionários públicos.
Se aprovada, a proposta de lei do governo vai permitir que a administração federal aplique, por via administrativa, multas de R$ 6 mil a R$ 6 milhões, além de bloquear o acesso a incentivos fiscais ou empréstimos em bancos oficiais às empresas acusadas de corrupção. ?Pela via administrativa, os processos terminam em até 180 dias. Na Justiça, não acabam nem em 180 anos?, fala Hage
Pela via judicial, o governo poderá pedir a devolução de bens e valores obtidos por meio de corrupção ou mesmo o próprio fechamento da empresa.
?Hoje, a punição em caso de corrupção, fraude e atos de improbidade se dá a um executivo da empresa envolvida. Nesse caso, ele é demitido, sofre um processo civil e a empresa continua operando e cometendo, muitas vezes, os mesmos atos ilícitos. É necessário ter uma punição exemplar para as empresas?, afirma Caio Magri, secretário do Pacto Empresarial pela Integridade e Contra a Corrupção e assessor de políticas públicas do Instituto Ethos. ?Acredito que esse projeto de lei é um avanço importante para conseguirmos chegar a um ambiente de mercado competitivo e transparente.?
Claudio Weber Abramo, diretor executivo da ONG Transparência Brasil, elogia um outro aspecto do projeto de lei. Atualmente, é comum o proprietário de uma empresa punida com a declaração de inidoneidade fechar sua empresa e abrir outra com um novo sócio para burlar a punição. A proposta enviada ao Congresso veta essa manobra ao relacionar a punição não somente ao CNPJ da companhia, mas também ao nome de seus controladores. ?Donos de empresas de pequeno e médio porte, como aquelas que vendem merenda ao governo, vivem fazendo isso?, diz.
Resistências
Advogados e juristas, no entanto, apontam falhas na concepção da legislação. ?Todo projeto de lei que tem como princípio coibir a corrupção é uma boa ideia. Mas, ao examinar a proposta, percebi que os atos são muitos amplos, o que pode gerar uma série de interpretações que não se limita a punir atos de corrupção?, afirma Ricardo Levy, sócio da Pinheiro Neto Advogados.
Para o advogado, as mudanças podem desestimular a participação de empresas em licitações. ?A exposição a risco é muito grande. Se um funcionário cometer alguma contravenção, a empresa deverá arcar com esse ato. O mesmo ocorre quando uma empresa está associada a um consórcio. A punição se dará da mesma forma?.
Por outro lado, Magri, do Instituto Ethos, elogia exatamente a falta de detalhamento do texto. ?No Congresso e com a ajuda de consultas públicas, o projeto pode ganhar uma forma mais adequada e ser aperfeiçoado.O governo está certo em não criar amarras?.
Outro ponto de preocupação é a possibilidade de fechamento das empresas. Segundo o ministro da Controladoria Geral da União, essa opção se restringirá ?a situações absolutamente extremas?, em casos como o de empresas laranjas, fantasmas ou criadas para lavar dinheiro.
O texto do projeto, entretanto, é mais vago. Diz que a dissolução compulsória será determinada quando a empresa for ?utilizada para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos? ou ?for constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados?.
A suspensão das atividades de uma empresa é um tema delicado, considerado por alguns juristas inconstitucional. ?A Constituição protege a empresa. São os maus administradores que precisam ser penalizados. Não é correto que todos os funcionários de uma companhia paguem pelos erros de poucos. Isso seria inconstitucional?, diz o advogado Ives Gandra Martins.
Com ele concorda Walter Cardoso Henrique, presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB. ?A lei não pode punir toda a cadeia produtiva. Além disso, qualquer lei que queira combater a corrupção deve levar em consideração os dois lados. Sem a anuência das duas partes não há ato ilícito?.
Ambos compartilham a opinião de que a falta de leis não é a causa para o problema atual da corrupção no Brasil e por isso questionam a eficácia da medida.?A legislação contra a corrupção é forte, o problema é a lentidão da Justiça. É uma questão de processo, não de leis?, diz Gandra Martins.
A própria Controladoria Geral da União admite que as medidas propostas não serão suficientes para acabar com a corrupção no país, um processo muito mais complicado e amplo. ?A corrupção no Brasil não é um problema de leis, é um problema cultural. Uma grande parte da população é apática. Alguns nem lembram em quem votaram na eleição passada. É como dizem: toda sociedade tem o Congresso que merece?, afirma o cientista político Carlos Alberto Furtado de Melo, professor do Insper.
Para entrar em vigor, o projeto de lei precisará ser aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado e depois sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em pleno ano eleitoral, as medidas prometem causar ainda muito mais polêmica.