A plena realização do sonho de Martin Luther King de viver em um país onde as pessoas são julgadas pelo caráter e não pela cor da pele ainda não aconteceu. Quem afirma é Barack Obama, que assume a presidência dos Estados Unidos no próximo dia 20.
"Sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente", diz Obama.
O "desabafo" do futuro presidente dos EUA está no livro "Audácia da Esperança - Reflexões Sobre a Reconquista do Sonho Americano" (Larousse, 2007), ensaio autobiográfico escrito de próprio punho por Obama. Além de discutir as tensões raciais nos EUA, Obama fala de sua vida e apresenta suas idéias para o país, discute Bush e seu governo, a intervenção norte-americana no Iraque, o terrorismo islâmico e outros temas americanos.
No trecho do livro que pode ser lido abaixo, Obama usa exemplos de sua vida pessoal e indicadores sociais para comprovar seu argumento de que o racismo ainda não foi superado nos EUA.
Leia o texto de Obama e veja também outros livros sobre os Estados Unidos
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Quando sou apresentado às pessoas, elas às vezes citam um trecho do discurso que fiz na Convenção Nacional Democrata de 2004 que pareceu causar comoção: "Não existem os Estados Unidos dos negros, os Estados Unidos dos brancos, os Estados Unidos dos descendentes de latinos ou os Estados Unidos dos descendentes de asiáticos - existem apenas os Estados Unidos da América". Para eles, essa idéia reflete uma visão dos Estados Unidos finalmente livres do passado de Jim Crow e da escravidão, dos campos de concentração japoneses e dos bóias-frias mexicanos, das tensões trabalhistas e dos conflitos culturais - um país que concretiza o desejo de Martin Luther King de não sermos julgados pela cor de nossa pele, mas pelo nosso caráter.
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De certa forma, não tenho outra escolha a não ser acreditar nessa visão dos Estados Unidos. Como filho de negro com branca, nascido na "mistura de raças" do Havaí - e com uma irmã meio indonésia (que é normalmente confundida com mexicana ou porto-riquenha), um cunhado e uma sobrinha de ascendência chinesa, alguns parentes consanguíneos que parecem a Margaret Thatcher e outros que poderiam se fazer passar pelo Bernie Mac, de maneira que as reuniões familiares no Natal parecem uma reunião da Assembléia-Geral da ONU -, nunca tive como restringir minha lealdade com base na raça, ou medir meu valor baseado na minha tribo.
Além disso, acredito que parte da genialidade dos Estados Unidos deva-se à sua capacidade de incorporar os recém-chegados e construir uma identidade nacional com base nos diferentes povos que chegaram às nossas terras. Nisso recebemos a ajuda de uma Constituição que, apesar de ter sido estragada pelo pecado original da escravidão, tem em seu bojo a idéia de igualdade perante a lei; também contamos com a ajuda de um sistema econômico que, mais do que qualquer outro, ofereceu oportunidades a todos que tivessem potencial, sem considerar status, título ou classe social. É claro, os sentimentos de racismo e xenofobia têm minado repetidamente esses ideais; os poderosos e privilegiados têm muitas vezes explorado o preconceito para facilitar o favorecimento próprio. Mas, nas mãos dos reformistas, de Tubman a Douglass, Chavez e King, esses ideais de igualdade aos poucos moldaram a maneira como enxergamos a nós mesmos e possibilitaram o surgimento de uma nação cujo multiculturalismo assumiu uma forma única, diferente da de qualquer outro país.
Por fim, essas linhas em meu discurso descrevem a realidade demográfica dos Estados Unidos do futuro. Atualmente, no Texas, na Califórnia, no Novo México, no Havaí e no Distrito de Colúmbia, a maioria é hoje minoria. Mais de um terço da população de outros doze estados é composto de latino-americanos, negros e/ou asiáticos. Os latino-americanos já chegam a 42 milhões no país e são o grupo demográfico que mais cresce, respondendo por quase metade do crescimento populacional da nação entre 2004 e 2005; a população de origem asiática, embora bem menor, passou por um aumento similar e espera-se que cresça mais de 200% nos próximos 45 anos. Pouco depois de 2050, segundo projeções de especialistas, os Estados Unidos não serão mais um país de maioria branca. As conseqüências que isso trará para nossa economia, nossa política e nossa cultura ainda são impossíveis de prever com exatidão.
Mesmo assim, quando ouço os comentaristas dizendo que meu discurso é sinal de que chegamos à "política pós-racial" ou de que já vivemos em uma sociedade sem discriminação racial, preciso fazer uma ressalva. Dizer que todos formamos um só povo não é sugerir que nele as questões de raça foram superadas; nem que a luta pela igualdade foi vencida, ou que os problemas hoje enfrentados pelas minorias neste país são em grande parte causados por elas mesmas. Conhecemos as estatísticas: em quase todo indicador socioeconômico, da mortalidade infantil à expectativa de vida, da taxa de emprego à moradia própria, os negros e os latino-americanos continuam bem atrás dos brancos. Nos altos cargos executivos de todos os Estados Unidos, as minorias não estão representadas; no Senado, há apenas três membros latinos e dois asiáticos (ambos do Havaí); e ao escrever isso hoje, sou o único afroamericano no recinto. Sugerir que nossa atitude em relação a raça não tem um papel importante nessas disparidades é fechar os olhos para nossa história e experiência - e uma tentativa de nos livrar da responsabilidade de consertar a situação.
Além disso, embora minha própria criação dificilmente seja um exemplo típico da experiência afro-americana - e embora, por sorte e circunstância, eu hoje ocupe uma posição que me separa da maioria dos solavancos e contusões que o negro comum precisa enfrentar -, sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados ao longo de meus 45 anos: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente. Sei como é ouvir gente dizer que não posso fazer algo por causa da minha cor, e conheço o gosto amargo da raiva ao engoli-la a seco. Também sei que eu e Michelle devemos estar sempre atentos em relação a algumas das histórias prejudiciais que nossas filhas poderão absorver - da televisão, de músicas, dos amigos e das ruas - sobre quem o mundo acha que elas são, e sobre o que o mundo imagina que deveriam ser.
Pensar a questão da raça de forma clara, portanto, exige que vejamos o mundo em uma tela dividida - para, enquanto olhamos sinceramente para a situação atual do país, termos em mente que tipo de nação queremos, a fim de reconhecer os pecados de nosso passado e os desafios do presente sem ficarmos presos ao cinismo ou desespero. Testemunhei uma profunda mudança nas relações raciais ao longo de minha vida. Fui capaz de senti-la com tanta clareza como alguém sente uma mudança de temperatura. Quando ouço algumas pessoas da comunidade negra negarem essas mudanças, penso que isso não apenas desonra os que lutaram pelo nosso interesse, mas também nos impede de completar o trabalho que eles começaram. Porém, por mais que insista em que as coisas melhoraram, também sei que na verdade melhorar não é o bastante.