A violência contra mulheres e meninas está inserida na discriminação baseada em fatores relacionados a gênero e normas sociais que aceitam, normalizam e até são cúmplices de ataques que menosprezam e tiram a vida de pessoas do sexo feminino.
No primeiro semestre de 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios, com 669 casos no período. Em 2021, mais de 66 mil mulheres foram vítimas de estupro e mais de 230 mil brasileiras sofreram agressões físicas por violência doméstica. Os dados são do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Com uma taxa de femicídios alarmante, saber identificar e entender as raízes da violência perpetrada contra mulheres se faz necessário para coibir e combater este tipo de crime. Em entrevista ao Jornal Meio Norte, a delegada de Polícia Civil do Piauí Eugênia Villa fala que é preciso reforçar a consciência de que a violência de gênero é estrutural e estruturante nas relações sociais.
“A violência contra nós, mulheres, está em toda parte e a qualquer instante, inexistindo lugar ontológico para ela. Não podemos reduzir o campo da violência contra a mulher a categorias estabelecidas em normas jurídicas. Portanto, somos vítimas de violência nos mais diversos ambientes, sejam eles materiais ou imateriais”, contou.
É preciso salientar que violência conceitua qualquer conduta - ação ou omissão - de discriminação, agressão, coerção e violação de direito pelo fato da vítima ser mulher.
No feminicídio íntimo, casos em que a vítima tinha ou teve uma relação íntima, de convivência, intimidade ou namoro, o maior desafio para vítima é se enxergar no cenário de violência. Segundo a delegada Eugênia, a sociedade costuma silenciar e incorporar reiteradas atitudes abusivas como “peculiaridades” do relacionamento.
“Para compreendermos se estamos em relacionamentos abusivos, precisamos conhecer as violências e experiências para identificarmos fatores de risco. Costumo ilustrar esse pensamento com a fábula da ‘Rã Escaldada’, que nadava em água morna, pensando tratar-se de temperatura perene. Porém, com o tempo, ocorreu a fervura da água e a rã, cansada de nadar, não mais teve energia para saltar da panela ao fogo e sobreveio à morte”, contou.
A delegada frisa que o assassinato de mulheres é habitual no regime patriarcal, no qual pessoas do sexo feminino estão submetidas ao controle dos homens, quer sejam maridos, namorados, amigos ou familiares.
Em 2022, o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (TJ-PI) alcançou o maior número de julgamentos de feminicídios desde a criação da Lei nº 13.104, em 2015, que reconheceu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Segundo a Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação do TJ-PI (STIC/TJ-PI) mostram que em 2022 foram realizados 62 julgamentos de feminicídio no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Piauí; em 2021, foram 60.
Feminicído íntimo
“Em se tratando de feminicídio íntimo, em regra, pode ocorrer no momento que o agressor se dá conta de que perdeu o controle sobre a mulher. Para ele, a perda do controle equivale à perda da masculinidade. De forma analógica, podemos dizer que corresponderia à impotência, ou seja, ele não mais se vê na condição de sujeito homem”, falou.
O principal meio utilizado pelos agressores, conforme a delegada, é o controle. Trata-se do Mandato da Masculinidade, potência da masculinidade que se expressa pela necessidade de controlar uma mulher, ou seja, para auferir a potência do homem em controlar uma mulher.
“Controle em relação a nossas escolhas, gestos, comportamentos, modo de pensar e de agir, modo como nos representamos socialmente, no trabalho, de assumirmos cargos e funções de comando, como nos comunicamos, acessarmos campos como da ciência e tecnologia, entre outros diretamente ligados aos atributos de cada uma de nós”, falou.
No plano político, comentou Eugênia, a violência pode se manifestar pela confiança em um sistema formal genérico e isonômico, que acoberta relações de gênero em processos de elaboração, interpretação e aplicação de leis, acesso de mulheres a cargos públicos, eletivos e de comando, considerando que os detentores das decisões são majoritariamente homens.
“O principal impacto disso é a despersonalização do sujeito mulher por meio do confisco de atributos que lhe definem como sujeita histórica e social, dotada de sentido de vida. Os atributos lhe são próprios, construídos ao longo de sua vivência. A violência retira atributos e inviabiliza o desenvolvimento humano, atingindo potências constitutivas centrais como capacidade de pensar, sentir e agir livremente”, comentou.
A delegada declarou que no âmbito político, o mandato da masculinidade fortalece uma sociedade com notações patriarcais e efeitos misóginos desastrosos que podem resultar em feminicídio.
Ligue 180
Além dos esforços para dar apoio às sobreviventes de violência, a prevenção – abordando as causas estruturais, bem como os fatores de risco e proteção associados à violência – é fundamental para reprimir condutas que menosprezam e ceifam vidas de mulheres. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 presta uma escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes, bem como reclamações, sugestões ou elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento.
O serviço também fornece informações sobre os direitos da mulher, como os locais de atendimento mais próximos e apropriados para cada caso: Casa da Mulher Brasileira, Centros de Referências, Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), Defensorias Públicas, Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros.
A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. São atendidas todas as pessoas que ligam relatando eventos de violência contra a mulher. O Ligue 180 atende todo o território nacional e também pode ser acessado em outros países.