A produtora Tainá*, de 42 anos, separava distraída a roupa que usaria na festa de fim de ano da empresa em que trabalhava quando, de costas para a porta do quarto, escutou o engatilhar da arma do então companheiro em sua direção. O medo de morrer naquele momento a paralisou. “Nem virei o corpo”, lembra.
A advogada Sueli* se separou do namorado após uma tentativa de agressão física. Tempos depois, ele passou a persegui-la e pressioná-la para retomarem o namoro. O detalhe é que Sueli descobriu que o ex-companheiro, um político do interior de Santa Catarina, havia usado a arma para atirar na casa da ex-mulher ao final do antigo relacionamento.
Tainá e Sueli sobreviveram a essas e outras ameaças durante o tempo em que conviveram com seus parceiros. Outras mulheres, porém, não conseguiram escapar da violência armada. Dos 4 mil casos de óbitos femininos por agressão registrados em média por ano, metade tem como meio empregado as armas de fogo.
O dado foi divulgado em uma pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz, que revelou que o armamento é o principal instrumento empregado nos assassinatos de mulheres no Brasil. Ao longo das duas últimas décadas, entre 2000 e 2019, a violência armada esteve presente em 51% dessas mortes.
“Precisamos discutir qual o papel das armas na violência doméstica. Os dados surpreendem porque derrubam o mito de que as armas branca são as principais responsáveis pela morte de mulheres”, afirma Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto.
O levantamento mostra ainda que, entre 2012 e 2019, o pior ano foi o de 2017, com 54% de mortes de mulheres por armas de fogo. O dado refletiu um aumento geral de criminalidade e de aumento da tensão entre facções, com maior número de mortes por balas perdidas. Já em 2019, a proporção de assassinatos femininos com o instrumento foi de 49%, seguindo a redução da criminalidade.
Diferenças por região
A pesquisa mostra ainda que a arma de fogo prevalece no Nordeste com 61% dos casos, seguida pelas regiões Norte e Sul com 48%. O Sudeste e o Centro-Oeste têm proporções menores, com 38% e 37%, respectivamente.
Os tipos de violência armada têm diferenças em cada região do país, como demonstra o estudo. Segundo a diretora executiva do Sou da Paz, nos últimos anos houve uma migração da violência e do crime organizado para o Nordeste, bem como o nascimento de outras faccções criminosas. Tanto no Sul quando no Norte, há um percentual significativo de conflitos agrários. Especificamente no Sul, existe uma elevada disponibilidade de armas de fogo.
Em relação à violência de gênero, a promotora de Justiça de Enfrentamento a Violência Doméstica, Fabiana Dal’Mas, afirma que existe uma desigualdade nos aparelhos de proteção à mulher. "Em São Paulo, há 139 delegacias da mulheres, em Alagoas, são 3. Uma experiência de sucesso é a Casa da Mulher Brasileira que deveria ter mais investimento em ampliações para outras regiões, mas, por conta da pandemia, as mulheres acabam não procurando."
“Com a arma, o medo da violência doméstica se agrava, gera transtornos de ansiedade e medo. Uma coisa é a mulher saber que pode ser espancada, que já é terrível, outra é saber que pode ser morta”, diz Carolina. “O instrumento tem um papel intimidador muito maior. Dormir com a arma embaixo do travesseiro, por exemplo, é um jeito do agressor controlar a mulher.”
Entre as mulheres negras, o percentual de vítimas de agressão com arma de fogo foi de 70,5% em 2019. Segundo a pesquisa, as adultas jovens, de 20 a 29 anos, representam a maior parte das vítimas, seguidas das adultas de 30 a 39 anos. “Essa correlação entre armas de fogo e a violência doméstica é muito presente nos casos práticos porque quanto mais armada a população está mais violência veremos. O que resguarda a população são programas complexos como empregos e capacitação para que as mulheres alcancem independência econômica”, afirma Fabiana.
Proteção à vida
A promotora, presidenta da ABMCJ (Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica) de São Paulo, afirma que uma das principais preocupações do Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida é saber se o parceiro possui arma de fogo. “É muito comum o agressor portar armas de fogo, por isso, pedimos medida protetiva para a proibição de porte e posse de armamentos”, explica. “Em situações cotidianas, se uma pessoa não tiver acesso a uma arma, muitos tipos de violência seriam evitados. Existe uma falsa sensação de que a arma pode ser usada para proteção, mas isso é falso porque falta capacitação e treinamento adequado.”
No momento em que a mulher vai à delegacia para fazer o boletim de ocorrência por violência doméstica, a autoridade policial deve perguntar se ela sabe da existência de uma arma por parte do agressor. Com isso, a Polícia Federal ou o Exército são notificados para que a arma seja apreendida de forma imediata. “A existência da arma aumenta o nível de intimidação. É preciso retirar a arma da situação de violência e aplicar a lei Maria da Penha”, diz Carolina.
Locais públicos e ambientes domésticos
A pesquisa mostra ainda que a vitimização por agressão com armas de fogo ocorre, sobretudo, em lugares públicos. Nesses locais, ocorrem 53% dos óbitos por agressão com arma da população em geral. No entanto, o índice para mulheres é de 42%. A proporção de mortes por arma de fogo dentro de casa atinge 11% dos homens e 26% das mulheres. “Fica muito claro que as mulheres morrem por arma de fogo e dentro de casa. É uma violência muito mais nociva para as mulheres”, afirma a diretora do instituto.
A casa foi o espaço em que Tainá se sentiu ameaçada mais de uma vez pelo marido policial militar. Casada por quatro anos, ambos moravam juntos em um apartamento de São Paulo. Em 2004, a produtora foi ameaçada com a arma de fogo caso decidisse ir sozinha a uma festa de confraternização da empresa em que trabalhava. “No início, ele era tranquilo, me tratava bem, me apoiava, estávamos construindo uma vida juntos. Ele tinha muitos sonhos em relação a nós."
A produtora, porém, começou a deslanchar na carreira, mudou de emprego e começou a fazer viagens para outros estados com mais frequência. “Nessa época, ele queria ter filhos e eu queria adiar esses planos”, diz. “Então, ele ligava nos hotéis que eu me hospedava para verificar se eu estava lá mesmo.”
Com o tempo, as discussões ficavam cada vez mais acaloradas por conta dos diferentes projetos de vida. “Ele começou a me xingar e me diminuir na relação para justificar a insegurança dele. Uma vez ele me deu um mata-leão e me segurou pelo braço durante uma discussão”, afirma. Depois disso, Tainá se mudou para a casa da tia por um tempo para que os pais não soubessem da agressão. “Quando voltei para o apartamento, ele me pediu desculpas e disse que tinha se descontrolado porque estava nervoso com as coisas dele.” No fim de 2004, Tainá conta que o marido ficou irritado ao saber que não poderia acompanhá-la na festa de fim de ano da empresa em que trabalhava. “Ele me disse que mulher casada não ia em festa sozinha e ficou a discussão.”
A produtora foi até um shopping, comprou uma roupa para usar no dia do evento e, quando voltou para casa, ouviu do quarto o engatilhar da arma. Sem se virar de frente, ela disse ao marido: “Se você me der um tiro, vai ser ruim para você”. Tainá ficou paralisada sem saber o que fazer até que, minutos depois, ouviu a porta do apartamento bater. Seis meses depois da ameaça, a produtora pediu a separação. Com o pedido, vieram também uma série de perseguições. “Ele começou a ver meus e-mails e, quando voltei para pegar minhas coisas, ele estava com uma arma em punho novamente”, diz. “Ele bateu a arma no peito e repetiu que o apartamento era dele e que se eu tentasse tirar era para tomar cuidado.”
Em outubro de 2006, ao final da separação, quando Tainá foi ao imóvel para retirar objetos pessoais, o parceiro teria dito a ela que havia cometido uma tentativa de suicídio. “Estar com uma pessoa armada significa não saber quando o pior pode acontecer. Ele não precisa estar perto, pode atirar de qualquer lugar. Pode seguir na rua, aparecer em casa e dar um tiro”, diz ela. Ainda hoje, 15 anos após a agressão e as ameaças, Tainá afirma sentir medo de passar ao lado de policiais militares. “É um medo que vou carregar a vida inteira porque você se pergunta onde você tem culpa, se não percebeu os riscos, os sinais. É sempre um sentimento de ‘onde eu errei?’”
Mais pressão e violência psicológica
O estudo mostra ainda que, entre as notificações que envolveram o emprego de arma de fogo, se sobressaem os casos de violência física, psicológica, moral e sexual, mas com diferenças de acordo com o gênero. Enquanto a violência armada não letal contra os homens está associada à agressão física (que equivale a 78%, entre as mulheres), a violência armada também está presente nos casos de violência psicológica e moral (21%) e sexual (18%).
No caso de Sueli, o medo da arma do companheiro estava associado à violência física e psicológica. A advogada catarinense se relacionou por três meses com o ex-namorado que mantinha a arma no porta luvas do carro. “Era uma pistola da Taurus preta. No começo, era algo que eu não gostava, mas não chegava a me incomodar. A partir do momento que sofri a agressão comecei a ficar com medo de que ele fizesse alguma coisa.”
Em abril de 2018, Sueli conta que o namorado, político do interior catarinense, engatou uma discussão sobre política com uma mulher durante uma festa. “Fiquei em choque com o jeito que ele tratou a pessoa. Até que um segurança me perguntou se eu estava o acompanhando. Tentei intervir e perguntei o que significava aquela discussão e o chamei de covarde”, lembra. “Quando eu disse essa palavra ele veio para cima de mim, inclinando o corpo para me bater, mas como eu não estava tão próxima, o irmão dele conseguiu afastá-lo de mim”, diz.
Com a tentativa de agressão, ela terminou o relacionamento. Um mês depois, porém, ele voltou a se aproximar, em uma tentativa de retomar o namoro. “Ele começou a mandar recados por outras pessoas e disse que estava arrependido e queria uma segunda chance. Sempre neguei porque tinha medo. Ora ele era calmo, ora falava exaltado.”
Tempos depois, Sueli soube por meio de um contato da polícia da cidade em que vivia que o ex-namorado havia disparado contra a casa de sua ex-mulher. “Descobri que o dono da casa fez um boletim de ocorrência contra ele por ter atirado. Na época, não quis registrar boletim de ocorrência porque tive medo e vergonha”, diz.
Segundo a advogada, foram 12 meses de mensagens intimidadoras, que só pioraram quando Sueli começou um novo relacionamento. “Tinha muito medo porque ele poderia fazer qualquer coisa que me atingisse drasticamente. Minhas janelas ficavam viradas para a rua. Ele poderia dar um tiro sentado do próprio carro. A facilidade que o agressor tem de destruir sua vida é muito grande”, desabafa.
* Os nomes citados nessa reportagem foram modificados para proteger a identidade das entrevistadas