Feminicídio acende alerta sobre riscos de mulheres sob ameaça

Trinta e seis mulheres foram assassinadas no Piauí só no ano passado. A maioria dos crimes foram praticados pelo companheiro ou ex-companheiro das vítimas

Mulheres são cada vez mais vítimas de feminicídio | Arquivo Meio Norte
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Por Waldelúcio Barbosa

O assassinato de Valdirene Torquato, 42 anos, a golpes de faca cometido pelo ex-marido identificado como Ezequiel Rodrigues Araújo, na última terça-feira (25), na região Centro/Sul de Teresina, acende mais uma vez o alerta às mulheres vítimas de violência: toda ameaça é um sinal de que algo pode acontecer. 

Já na quarta-feira (26), outra mulher de 59 anos sofreu tentativa de feminicídio sendo atingida com três tiros no bairro Mocambinho. O suspeito, um sargento aposentado da PM e ex-marido da vítima, foi preso horas depois do crime.

Mulheres são vítimas de violencia - Arquivo Meio Norte

Crime

De acordo com familiares de Valdirene, a trabalhadora doméstica já havia comunicado sobre as intimidações que sofria, inclusive tinha registrado Boletim de Ocorrência. O crime que vitimou Valdirene, é o primeiro feminicídio registrado em Teresina em 2022, mas segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Piauí (SSP-PI), 36 mulheres foram assassinadas no estado do Piauí no ano passado. A maioria dos crimes foram praticados pelo companheiro ou ex-companheiro das vítimas.

“O caso é bastante entristecedor e revoltante, o agressor e feminicida apresenta em suas atitudes aspectos de posse, objetificação sobre a mulher e vítima, alimentada por um tipo de dominação masculina, presente na cultura patriarcal. Além disso, é perceptível uma relação de poder sobre ela, portanto não aceitava o término da relação.  Outro dados super preocupante é que a mulher havia procurada ajuda entre familiares e instituições, isso demonstra uma falta de efetividade na aplicação das leis em defesa e proteção aos direitos das mulheres”, diz  Marcela Castro Barbosa,  socióloga e pesquisadora nas áreas de violência de gênero e geração, feminicídio e violência contra mulher.

De acordo com ela, faltou um melhor acompanhamento do caso. “Isso acaba favorecendo o sentimento de impunidade deixando o agressor e feminicida livre, para continuar perseguindo a vida da ex-companheira e a mulher passa a viver insegura, vulnerável, para qualquer tipo de violência, inclusive ao  feminicídio”.

Risco do rompimento da relação

Marcela Barbosa destaca ainda que se o agressor descumprir uma medida protetiva de urgência, ele poderá ser preso. “Nesse caso foi percebido uma lacuna muito grande, uma vida perdida, que poderia ter sido evitada e um filho órfão em decorrência do feminicídio”, acrescenta.

De acordo com Marcela agressor pode ser preso - Arquivo Meio Norte

Números

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Instituto Locomotiva em novembro de 2021 mostra que uma em cada 6 mulheres já sofreu tentativa de feminicídio no Brasil. É quando a mulher é ameaçada por sua condição de mulher. Isso normalmente acontece por parte de um marido, namorado ou ex-companheiro e, em geral, dentro da própria casa.

O momento percebido como de maior risco de assassinato da mulher que sofre violência doméstica pelo parceiro é justamente o do rompimento da relação para 49%, embora para 28% seja a qualquer momento. Portanto, ao denunciar, a mulher deve receber a medida protetiva para que o agressor fique proibido de chegar perto dela.(W.B)

Crime que envolve poder e misoginia

De acordo com informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o feminicídio se caracteriza por ser um "crime de ódio, que envolve relações de poder e traços de misoginia". O que determina que o crime é um feminicídio é a junção de duas situações: a vítima mulher aliada à comprovação de que o crime é cometido por sua condição de mulher.

“Os crimes contra as mulheres são diversos, eles podem acontecer no espaço doméstico e familiar ou não, cada caso é merecedor de atenção. No caso da Lei Maria da Penha que contempla os tipos de violência física, sexual, moral, psicológica e patrimonial. Esses tipos de violências se não forem enfrentados em tempo hábil poderá provocar uma das mais severas tipos de violência contra mulher, o feminicídio. Além dos casos de violência doméstica e familiar, o feminicídio pode decorrer do assassinato de mulher em razão de gênero, discriminação e menosprezo”, esclarece a socióloga.

Mulheres cada vez mais ameaçadas- Kelson Fontenele

Vítimas de agressão

Existem dois tipos principais de feminicídio, que são caracterizados pela motivação que levou ao crime: feminicídio doméstico, que acontece muitas vezes dentro do ambiente familiar, a partir de uma relação de intimidade que existe entre o agressor e a vítima e o feminicídio sexual que ocorre juntamente com a execução de um crime de natureza sexual.

“Além disso podemos destacar os crimes de violência sexual (estupro, assédio sexual, importunação sexual, exploração sexual), violação de direitos sexuais e reprodutivos, os crime de stalking voltado a perseguição, por qualquer meio, como a internet, que proporcione ameaça à integridade física e psicológica da vítima prejudicando seu livre-arbítrio e privacidade  e a violência psicológica  contra mulher, que desde o ano de 2021 passou a ser considerada um crime”, diz Marcela Barbosa.(W.B)

Práticas acontecem em razão da feminilidade

A  delegada Anamelka Cadena é atual diretora da Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Estado do Piauí (Agrespi) e atuou durante 10 anos como delegada em unidades especializadas ao atendimento à mulher no Piauí, ressalta que essas práticas de violência de gênero  têm uma característica peculiar de acontecer em razão da feminilidade, por isso, que se fala em misoginia, que é o ódio e desprezo pelo feminino.

Viiolência de gênero é recorrente e se perpetua- José Alves Filho

“Uma característica muito recorrente, principalmente dos feminicídios, que podem acontecer no âmbito da violência doméstico familiar ou no âmbito do menosprezo ou discriminação à condição de mulher, ou seja, não há necessidade desse vínculo dessa relação interpessoal para gente aplicar a qualificadoras do feminicídio, mas é muito recorrente que aconteça no âmbito dessa relação de violência doméstica e, portanto, a gente identifica muitas práticas de feminicídio íntimo, onde o autor tem essa relação interpessoal, esse vínculo de alguma forma com essa mulher”, diz a delegada.

Segundo ela isso é algo que preocupa muito e deve ter atenção, pois é bem sério.  “Isso é uma preocupação muito séria, porque a gente vê históricos de uma recorrência de prática de violência contra essa mulher que é vítima do feminicídio. A maior parte dos casos no estado Piauí são feminicídios íntimos, ou seja, no âmbito dessa relação no cenário de violência doméstica familiar e quando a gente vai fazer a investigação percebe que não houve durante essas práticas, qualquer busca a rede de enfrentamento violência contra mulher, qualquer registro de ocorrência ou pedido de medida protetiva”, declarou.(W.B)

Saídas para as mulheres ameaçadas

Diariamente um número significativo de mulheres, jovens e meninas são submetidas a alguma forma de violência no Brasil. Assédio, exploração sexual, estupro, tortura, violência psicológica, agressões por parceiros ou familiares, perseguição, feminicídio. Sob diversas formas e intensidades, a violência de gênero é recorrente e se perpetua nos espaços públicos e privados, encontrando nos assassinatos a sua expressão mais grave.

Segundo delegada Anamelka Cadena denúncia é importante - Arquivo Meio Norte

Aparato policial

As principais portas de saída são a polícia e os serviços de apoio às vítimas, mas há uma série de desafios a serem enfrentados, como a percepção de baixa eficiência do aparato policial para esse tipo de caso, o desconhecimento de equipamentos de apoio e a sensação de impunidade dos agressores.

“As mulheres que estão em situação de violência não devem ocultar os casos, a denúncia é importante. Por isso, os serviços oferecidos pela rede de enfrentamento a violência contra as mulheres devem ser acionados. O apoio de familiares, amigos e filho também é importante. Há também os canais de atendimento como 180, o aplicativo Salve Maria e em casos mais urgentes  190”, orienta Marcela Castro.

Enfrentamento à violência contra a mulher

Anamelka Cadena falou ainda sobre os mecanismos de enfrentamento à violência contra a mulher no estado do Piauí. Para a delegada, atualmente a preocupação é criar estratégias para alcançar essa mulher em situação de violência. Dessa forma, foram criadas ferramentas como, por exemplo, o aplicativo Salve Maria, em 2017, assim como estratégias de facilitar o acesso com a divulgação desses meios de alcance e a vinculação, a proximidade das instituições que formam a rede como Defensoria Pública, Centro de Referência e Ministério Público.

“A Central de Flagrante Gênero foi outro procedimento  criado exatamente para facilitar a busca da mulher a qualquer hora em caso de violência a ter um acolhimento com  a metodologia que é aplicada nas delegacias da mulher e uma preocupação que se teve que foi uma estratégia mais recente criada exatamente para estimular o pedido da medida protetiva, foi a criação da Patrulha Maria da Penha, que vai acolher os casos em que a medida for determinada, eles se insere no programa, essa medida inserida e a toda uma dinâmica de visita da mulher situação de violência e do autor também para relembra-lo do descumprimento, gerar a prisão em flagrante para reforçar os termos dessa medida protetiva”, disse.

Mulheres pedem socorro em meio ao medo da violência -  asiandelight/shutterstock

Machismo

De acordo com Anamellka, essas estratégias precisam tanto serem fortificadas e conhecidas, trabalhando a perspectiva preventiva buscando desconstruir machismo nas escolas, junto à sociedade em diálogos que possam acontecer, inclusive, falando sobre quais são esses direitos, como funciona a rede, quais são os canais de acesso, tanto no aspecto preventivo, quanto no aspecto de garantir a cidadania dessas mulheres de conhecerem seus direitos e de poderem buscá-los.

“Essa é uma estratégia que deve ser fortalecida, porque a gente ainda vai a muitas imersões junto à sociedade, junto a comunidades e às vezes, muitas vezes, no interior do Estado e percebe que muitos dessas mulheres, o 180, o próprio aplicativo Salve Maria, a possibilidade de alcançar a rede de atendimento em cada local, e ela ter uma performance diferente, ter uma estrutura diferente em cada local, isso é algo que ainda precisa ser muito conhecido pelas pessoas”, pontuou.(W.B)

Lei do feminicídio vai completar 7 anos

No dia 9 de março de 2015, a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15), entrou em vigor alterando o Código Penal e em 2022 completa sete anos. Ficou estabelecido que o feminicídio é circunstância qualificadora do crime de homicídio, ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher.

A Lei do Feminicídio não enquadra todos os homicídios cometidos contra as mulheres. O texto legal prevê situações para que seja aplicada a lei, como por exemplo, à violência doméstica ou familiar. Quando o homicídio é praticado pelo cônjuge, parceiro ou outro familiar da vítima. A motivação deve estar diretamente relacionada ao gênero, ou seja, à condição de mulher.

Além disso, o feminicídio é considerado um crime hediondo (previsto na lei nº 8.072/90), ou seja, faz parte da lista de crimes que são mais graves por causarem maior indignação ou comoção social. A classificação do feminicídio como crime hediondo faz com que a conduta seja tratada pela Lei Penal de forma mais rigorosa.(W.B)

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